A melancolia dos corpos solitários
Por Marco Fialho
Antes de assistir "Dias" é preciso saber que este é um filme típico do universo de Tsai Ming-Liang. Neste novo trabalho ele continua a fazer passeios narrativos em consonância com a sua obra recente: planos longuíssimos, câmera fixa, poucos diálogos (aqui praticamente nenhum) que por si próprios já criam um zona de tensionamento com os espectadores, ainda mais com aqueles cada vez mais inseridos nas narrativas usuais do cinema contemporâneo, onde a ideia de ação está colocada como sinônimo de movimento dos corpos. Um cinema sem grandes aparatos e truques técnicos, que busca inspiração tão somente no humano.
Em "Dias" a história se apresenta pacientemente desde a primeira sequência, que só não achamos que a imagem está congelada devido ao posicionamento da câmera a enquadrar o personagem por de trás de um vidro a refletir folhas agitadas pelo vento. Assim é o cinema de Ming-Liang, uma obra a ser descoberta cena a cena, por puro prazer voyeurístico, pois o diretor filma usando métodos que se assemelham a do documentário observacional, com um pressuposto de neutralidade no uso da câmera, quando ela invasivamente captura rituais da vida cotidiana dos personagens em cena.
A câmera registra apenas dois personagens e seus cotidianos, e eles são bem diversos. Um mora numa região mais urbana, em um apartamento bem precário, pequeno e improvisado. O outro mora numa casa mais requintada, numa região onde impera uma vegetação agradável. A partir de então, somos expostos as diferenças e similaridades dessas vidas. As diferenças são essencialmente as sociais e geracional. Enquanto o com mais idade (seu ator-fetiche, Lee Kang-Sheng) possui uma vida econômica estável, o mais moço vive com dificuldades. Um tem uma saúde plena, o mais rico tem um problema sério na coluna. Essas são as nuances do capitalismo, não importa se você vive no Ocidente ou Oriente, as diferenciações de status estarão presentes, um contrata enquanto o outro é contratado, regra simples do sistema social assentado nos privilégios. Mas não é a isso que Ming-Liang se prende.
No meio de tantas diferenças é uma similaridade o que mais chama a atenção aqui. Nessa Taiwan desenvolvida e economicamente imponente, o que mais aproxima dois personagens improváveis é o sentimento de solidão. Podemos dizer que Ming-Liang cria por meio de imagens uma poética carnal e melancólica. Para ele, a contemporaneidade reserva o fugidio como possibilidade. As relações vem e escapam, porque afinal o que se tem aqui é o encontro de solidões. Ming-Liang, com maestria e leveza trata esse encontro com uma delicadeza sutil. A melancolia impregna os corpos, a solidão é revelada até nos encontros. Essa é a encenação que dá a tônica, há algo de doída nela e a ausência das palavras parece apenas agravar essa sensação.
Aparentemente, o que está em jogo são trocas, mais sexuais do que afetivas. Mas será mesmo? Se é verdade que o dinheiro compra objetos, pessoas, tudo isso também se evapora ou sai no ralo. Em Ming-Liang o tempo fílmico parece se alargar, mas contraditoriamente, na ação em si ele se esvai com uma ligeireza espantosa, consumido antes de tudo por possui uma valoração econômica, inclusive a do rapaz que é pago para fazer massagem e um prazer a mais. O que é longo para o espectador revela-se um sopro para os personagens, por isso a melancolia permeia e dá o tom em "Dias".
Mas surpresas acontecem e elas podem estar em pequenas coisas ou objetos. Se nos olhares vazios avistamos a solidão gritando em um silêncio aterrador, Mig-Liang nos reserva a beleza de seu cinema em um pequeno objeto, uma caixa de música minúscula que toca o tristíssimo "Tema de Terry", composta por Charles Chaplin para o filme "Luzes da Ribalta". Ela toca duas vezes. Uma quando o presente é dado e outra quando o presenteado está só no meio de uma rua de Taiwan. Essa dinâmica instaura uma dualidade temporal que está no cerne da ideia de Ming-Liang, pois a narrativa se constrói pela distância e aproximação dos corpos, no tempo e no espaço. Os sentimentos se consubstanciam, ou não, em movimentos interiorizados, como de praxe na obra do diretor que ambiciona deslocar as ações do exterior para o interior.
O cinema de um grande diretor surge assim de um dispositivo cênico aparentemente banal, como um som de uma música vindo de um objeto, e nos atinge quase sem notarmos para se instalar em nossas almas como uma ferida reconhecível. Longe se ser uma recompensa pelas duas horas que ficamos presos ao filme, é uma sequela que se abre e sem prazo de validade para ser fechada.
Visto na plataforma da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no dia 26/10/2020.
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