A Cordilheira utópica de Patricio Guzmán
Por Marco Fialho
Penso que "A Cordilheira dos sonhos", novo documentário de Patricio Guzmán, seja fundamentalmente sobre memórias. Ou dizendo melhor ainda, sobre o confronto da memória de um sujeito com a memória social de um país. Mas também poderia ser sobre uma consciência nada indulgente, castigada pela força de uma história sofrida profundamente na pele. Mas ainda podemos dizer que é sobre uma poesia que emerge dessa relação entre o indivíduo e a história de um país. Patricio Guzmán é sempre isso, um despertar de tantas emoções, um turbilhão a mexer com as estruturas de quem o assiste. Um cineasta raro.
Guzmán saiu do Chile com a ditadura de Pinochet, mas ainda é um exilado inconformado. Volta ao Chile apenas para filmar. Apenas? Essa seria uma palavra talvez indesejada porque voltar para ele é se defrontar com seus demônios, com um Chile cada vez mais distante daquele que lhe foi roubado em 11 de setembro de 1973. Um filme de Guzmán é a reafirmação de uma memória precisa, de que o diretor sabe o exato momento em que seu país desviou-se, perdeu uma espécie de humanidade de Estado.
Sendo assim, "A Cordilheira dos sonhos" é sobre nós sul-americanos, sobre o avanço e a vitória de um sistema opressor que não permitiu o mundo ser, apenas ter. Guzmán sempre que volta ao Chile vê cada vez mais distante um certo Chile do passado que ele ajudou a construir até chegar o Governo Pinochet e arruinar com os sonhos. Que novo mundo foi esse nascido da ditadura que o indigna tanto? É justamente o mundo da impessoalidade, de um crescimento econômico que amesquinha a alma chilena. Os grandes prédios luxuosos contrastando com os bairros antigos em ruínas, como se uma memória ainda gritasse por ali. São os despojos de um país que ainda não foi reconstruído na pós- ditadura e Guzmán reforça essa ideia por meio de imagem dos destroços ainda presentes no bairro onde passou a infância.
O que mais me chama à atenção em "A Cordilheira dos sonhos" é a ideia de autoexílio em Guzmán e nesse ponto entra o cinema. O cinema dele desperta para o contraditório tanto o do sujeito quanto o da experiência social, ratifica o exílio e projeta a necessidade de falar do Chile de ontem e de hoje. Guzmán desmitifica a Cordilheira, interroga implacavelmente sobre a majestosa imagem que se tem dela. Confronta a Cordilheira historicamente. Para ele a Cordilheira também sofreu com a ditadura de Pinochet. Por trás de sua imagem poética se esconde a ganância desse "novo" chile assentado em ideias coloniais antigas, a da exploração dos minérios. A Cordilheira não pertence mais ao Chile, esse é mais um grito de Guzmán. Oitenta por cento da Cordilheira pertencem à iniciativa privada, um descalabro fortemente denunciado por Guzmán.
Cada imagem da Cordilheira cria um contraste violento em nossas percepções. O maior cartão postal do Chile confrontado com a história recente. A Cordilheira que talvez seja mais vista em uma estação de metrô em Santiago do que vivenciada verdadeiramente por sua população. A poesia de Guzmán não deixa de ser cruel ao reduzir essa imagem grandiloquente a um mero ilustrativo de um painel fotográfico. A metáfora é tão forte quanto qualquer imagem que volta e meia Guzmán resgata da memória de uma infância marcada por um Chile quase idílico, onde os grandes arranha-céus ainda não impediam a visão imponente da Cordilheira. É mais um apagamento infringido à Cordilheira e também envolve ambição financeira e um descaso à natureza. É como se Guzmán erguesse com o cinema que faz, a fórceps, um outro Chile, mais fraterno e humano. O seu cinema é um apelo, um grito poético sobre um Chile que subsiste apenas no imaginário de quem viveu um sonho não concretizado. Por isso, "A Cordilheira dos sonhos" é um filme que dói fundo em quem acredita, ou acreditou, em utopias.
Mas porque será que Guzmán opta em incluir um outro documentarista no filme? Claro que isso não é casual e Salas também não é qualquer documentarista. Ele também é um exilado, que vive em um minúsculo estúdio cercado pela memória guardada em fitas velhas. A missão de vida dele é filmar os protestos contra esse Chile da ditadura e pós-ditadura. Com ele estão imagens de um Chile se esvaindo pela violência de um governo autoritário prestes a entregar as riquezas chilenas aos grandes impérios internacionais. Por isso disse acima que "A Cordilheira dos sonhos" é sobre todos nós americanos do Sul. A luta insistente de muitos chilenos por reafirmar a derrota de um pensamento progressista e humanitário, presente no governo popular de Salvador Allende, serve para lembrar que a resistência ao golpe de Pinochet contra o povo chileno não será facilmente esquecido no Chile. Nesse ponto Guzmán nos representa nessa luta. Não casualmente os filmes de Guzmán falam sobre o assunto. Por mais que o diretor viva na França, o cinema que realiza habita no Chile. O existir é complexo mesmo e moramos onde mora nossa alma e Guzmán é a prova cabal disso.
Visto no Festival "É Tudo Verdade", no Canal Looke, em 24/09/2020, em versão on line, por causa da pandemia do novo Coronavírus.
"O existir é complexo mesmo e moramos onde mora nossa alma". Marco, suas palavras expressam o real dentro da gente, onde quer que estejamos.
ResponderExcluirConsidero "Nostalgia da Luz" e "O Botão de Pérola" grandiosos em belezas - dor e poesia. Em Guzmán até a dor pode parecer bela. Fechada a trilogia, temos toda a obra para rever, enquanto esperamos a próxima.
Pois é Nicia, trilogia perfeita, três obras primas! Pelo jeito fomos condenados a ser estrangeiros inclusive no nosso país. E Guzmán é consciente disso e nos faz também pensar sobre isso.
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