BOX: A ARTE DE MIKIO NARUSE
Texto de Marco Fialho
A poesia do feminino e o cotidiano condenado
Muito se fala da tríade do cinema japonês: Mizoguchi, Kurosawa e Ozu. Mas em 2013, a Folha de São Paulo junto com a Versátil Home Vídeo lançaram o filme "O som da montanha", de Mikio Naruse, na coleção "Grandes livros no cinema" e assim pairou-se uma dúvida no ar: será que não se trata de uma tríade, mas sim de um quadrado mágico do cinema japonês? Devemos lembrar que até 1951, com "Rashomon", do mestre Kurosawa, o Ocidente nem desconfiava que existia cinema feito no Japão. Portanto, por mais que hoje saibamos de sua existência e história, ainda persiste um desconhecimento em relação aos filmes. Proporcionalmente a sua produção, poucos foram exibidos no Brasil e muitos diretores expressivos praticamente não foram exibidos publicamente por aqui, caso de Heinosuke Gosho e Keisuke Kinoshita.
E foi novamente a Versátil que nos possibilitou conhecer melhor Naruse e nos mostrar o quanto seu cinema é gigante e precisa figurar entre os três mestres mais reconhecidos. Por isso, talvez o lançamento do box "A arte de Mikio Naruse" pode ser apontado como um dos mais expressivos do ano. É digno de ser comemorado pelos cinéfilos brasileiros, pois resgata para o público 4 pérolas desse diretor espetacular, o tirando do limbo e o deslocando para a honrosa e merecida posição de destaque nas prateleiras de qualquer apaixonado por cinema.
Nesse box, nos é apresentado "Correnteza" (1956); "Quando a mulher sobe a escada" (1960); "Tormento" (1964); e "Nuvens dispersas" (1967). Naruse iniciou a carreira de diretor ainda nos anos 1930, embora a sua maturidade estética pode ser mais evidente a partir dos anos 1950 e são justamente com os filmes dessa fase madura que a Versátil brinda o público brasileiro. Os 4 filmes revelam o rigor no qual Naruse constrói a mise-en-scène, o cuidado na composição dos planos, a delicadeza como pensa a direção de arte em cada obra. Precisa-se assistir aos filmes com um olhar meticuloso. Em "Nuvens dispersas", o único colorido do box, observa-se o quanto Naruse pinta cada quadro, como articula todas as cores presentes. Elimina o vermelho do primeiro plano e o coloca em pequenas pinceladas em algumas cenas, mas sempre ao fundo. As cores pastéis predominam, sendo o bege, o azul piscina e o cinza as mais presentes. Até quando o verde fulgurante das árvores aparecem, elas só servem de molduras para os figurinos com cores esmaecidas e ternas.
A unidade estética tão visível em sua fase mais madura (anos 1950 e 60) pode ser plena graças a presença contumaz de alguns profissionais de sua equipe. A atriz Hidake Takamine é um exemplo de parceria contínua, de quem sabia construir personagens fortes e realistas com o brilho e entrega que Naruse tanto apreciava. Mas o profissional mais constante foi Satoru Chûko no design de produção, o departamento que o diretor mais dava atenção em suas obras. Cada cenário e os objetos de cena observados em suas obras muito dizem sobre esse cuidado especial. Destaque ainda para a fotografia controlada em P&B de Masao Tamai, em especial em "Quando a mulher sobe a escada", um dos seus trabalhos mais bem concebidos. Podemos ainda salientar o belo e melancólico trabalho musical de Ichirô Saito, uma das marcas indeléveis dos filmes de Naruse.
Nenhum cineasta japonês foi tão pessimista quanto Naruse, mesmo que esse amargor seja alicerçado em doses homeopáticas, cena a cena, gota a gota em um lento crescente. Apesar do sofrimento ser tão presente nos filmes, o diretor não se permite cair no melodramático, o mundo vai lentamente matando os sonhos e as possibilidades de sucesso dos personagens, nada é abrupto. Naruse nunca se interessou pelo drama histórico (os jidaigeki), sempre primou por argumentos calcados nos shomingeki (dramas contemporâneos de pessoas comuns). Apesar de não esboçar um ranço panfletário sequer há em Naruse uma postura política evidente ao escolher sempre protagonistas fortes, pobres, sonhadores, que buscam viver corajosamente, mesmo quando inseridos numa sociedade em que as hierarquias se mostrem pouquíssimo flexíveis. O ponto de vista de Naruse realça continuamente as diferenças sociais, os jogos estabelecidos entre as classes e deixando claro a opção de pensar o mundo a partir dos despossuídos. Isso é estruturalmente inegociável para ele.
Se pensarmos em "Tormento", filme em que centra forças contra o avanço de uma rede de supermercados sobre os pequenos mercados de bairro, com uma política de preços desleal, já que por comprar grandes quantidades de produtos o preço direto ao consumidor cai drasticamente. É o começo desse processo impessoal que vivemos hoje quando não sabemos sequer quem são os donos dos comércio estabelecidos na nossa esquina. Naruse cria um importante painel sobre o fim dos negócios familiares. Com habilidade ele desenha as profundas e rápidas transformações sociais em Tóquio e como elas abalam o cotidiano de seus habitantes, seus hábitos. A delicadeza pela qual Naruse desenvolve a ideia é surpreendente, se utilizando de uma viúva como protagonista no meio de vários personagens que gravitam em torno dela. Ela perdeu o marido para a guerra, momento histórico determinante para o futuro econômico do Japão pós 1950. O que fica é que a força feminina dessa personagem é maior do que qualquer derrota que lhe é imposta por essa nova sociedade canibalizada pela ambição desenfreada. Outra característica marcante do diretor é a da irrealização do amor, em um mundo apenas constituído para a realização financeira. Dos 4 filmes do box, esse é o que mais a câmera se movimenta, talvez para ser condizente com as transformações sociais que está retratando.
Há uma tendência de Naruse em escolher como protagonistas personagens femininos de toda a sorte, inclusive as prostitutas (o que nesse ponto o aproxima muito de Mizoguchi), como no belíssimo "Quando a mulher sobe a escada", onde o painel social se desenvolve nas relações de poder entre os personagens. Ricos e despossuídos defrontam-se na crueza das cidades alicerçadas para que os mesmos vençam sempre e as mulheres continuem subalternas, exploradas em seus cotidianos contaminados por uma ilusão fugidia. Naruse encanta-se pelos personagens condenados, pelos renegados, os que já vem com o selo de perdedor tatuado na pele desde a nascença. A redenção não faz parte do mundo de Naruse, a experiência de quem está a lutar por uma vida melhor redunda sempre no fracasso, mas a maior tristeza consiste no fato de Naruse nos mostrar a beleza dos personagens, a força intrínseca deles, fica sempre a impressão de que de alguma forma eles venceram, e a sociedade se perdeu em meio a ganância.
No que tange à câmera e seu posicionamento, Naruse privilegia o plano estático, numa posição onde a cena transcorra sem a necessidade de movimentá-la. Pouquíssimas são as cenas em que a câmera se movimenta. Esse traço estilístico possui uma sofisticação cênica, pois o enquadramento é escolhido no intuito de contemplar o movimento dos atores dentro do quadro e a posição de cada objeto de cena ou do próprio cenário e sua profundidade de campo. Há um vistoso cuidado no que está sendo mostrado, tanto na cor (conforme já falamos acima) quanto na disposição de cada elemento presente na cena. O que mais chama a atenção nas obras de Naruse é um equilíbrio existente entre a atuação dos atores, os enquadramentos, a fotografia, a trilha sonora, a montagem, o texto falado e o não falado, enfim, há uma consonância entre os elementos mais particulares e o todo, o que faz com que haja uma harmonia estética que resulta numa fluência narrativa impressionante e precisa. Como cada detalhe está ali pensado para o todo, o todo soa equalizado e a sensação é de que há um domínio das ferramentas disponíveis. Tudo é notado, mas sem que percebamos que esse é o objetivo, já que a fruição das obras flui como um remanso de um rio. A música em Naruse é sempre contemporânea e melancólica, anunciadora de um presente acachapante, inevitável e que não poupará os personagens, em especial os femininos.
Toda essa complexa tecitura narrativa de Naruse se estrutura por uma envolvente e uma acurada decupagem dos planos. A opção por planos fixos, sempre muito curtos, mas de natureza variada (próximos, médios e gerais), combinados de maneira a imprimir um ritmo contínuo e evocarem um equilíbrio fascinante no desenvolvimento da trama, que resulta em uma deliciosa experiência de fruição. Outro destaque vai para os diálogos bem urdidos e as atuações dos atores (sobretudo das atrizes) realçados por um realismo certeiro. Deve se registrar o quanto Naruse é um diretor atento ao papel das mulheres na sociedade japonesa do pós-segunda guerra. Em "Correnteza", por exemplo, ele dá protagonismo às tradicionais gueixas, mostra o quanto elas estão em decadência, deslocadas nesse novo mundo industrializado e urbano. As dívidas vão desmontando o antigo glamour dessas valentes mulheres. A filha da protagonista não quer ser gueixa como a mãe e já se prepara para se adequar aos novos tempos como costureira. É o contraponto perfeito para anunciar o novo Japão, onde as tradições milenares não resistirão para além de um mero elemento pitoresco e histórico, como uma sombra a lembrar desse passado que na integralidade já está extinto.
Visto em DVD na semana de 01 a 07 de setembro de 2020.
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