TRONO
MANCHADO DE SANGUE – 1957 *
dos
bandidos, compõe versos
hoje
para a lua.
Buson (1716-1783)
Logo a primeira cena é de um preciosismo que beira o absurdo. Escutamos uma canção tradicional japonesa, cantada por um coro (que também encerra o filme) cujo tema é o da decadência de um guerreiro vítima da ambição, enquanto vemos a imagem de um imenso totem no presente, fincado no lugar onde ficava o Castelo Teia de Aranha, palco onde a história do filme será contada e cuja música sintetiza seu passado. De repente a imagem se enevoa e quando ela se dissipa somos transportados diretamente para o Castelo Teia de Aranha. Assim Kurosawa introduz o tema e convida o espectador a adentrar na sinistra história que será narrada em seguida.
Na história, algumas fortalezas de um senhor estão em risco, mas a bravura e a lealdade dos dois guerreiros dissipam a rebelião que estava a caminho. Ao voltarem pela floresta os dois guerreiros são surpreendidos por uma bruxa que profetiza que um dos guerreiros (Toshiro Mifune) assumirá o comando do maior Castelo, o da Teia de Aranha, enquanto o filho do outro o sucederá a seguir. Os problemas começam quando a mulher do personagem de Mifune (interpretada pela ótima atriz Isuzu Yamada), por pura ambição, começa a atormentá-lo e insufla-lo a matar o senhor do castelo e assumir o trono.
A utilização do coro na abertura e fechamento do filme é o primeiro sinal que Kurosawa dá acerca da incorporação de elementos do teatro Nô na concepção de “Trono Manchado de Sangue”. Diante às diferenças óbvias entre as formas de representação e encenação do cinema e do Nô fica evidente a ousadia de Kurosawa em misturá-las numa mesma obra. Mas não se trata aqui de um hibridismo, porque a forma cinema continua sendo a predominante, mas o eco do Nô está ali a impregnar a narrativa fílmica. De acordo com o crítico de cinema Walter da Silveira, ao assistir ao filme “foi fácil surpreendê-lo (o Nô) na feitiçaria e na personagem correspondente a lady Macbeth, cuja maquilagem trazia esse caráter.” Mas hoje podemos ir além dessa afirmação. Segundo depoimento da própria atriz, Isuzu Yamada, Kurosawa solicitou que ela procurasse não piscar os olhos, que se expressasse apenas pelo movimento do corpo. Essa solicitação foi feita também a Toshiro Mifune. Na própria cena final, da morte do guerreiro usurpador, Mifune também se concentra em fazer do rosto uma máscara, com olhos esbugalhados, fixos, enquanto recebe dezenas de flechadas pelo corpo. Os cenários internos do Castelo Teia de Aranha são sóbrios, simples, feitos de madeira e também inspirados nos palcos do espetáculo Nô.
Ao adaptar uma peça clássica da cultura ocidental Kurosawa precisou optar por recursos estéticos e narrativos para tornar a história crível no universo japonês. Nesse sentido, as observações do crítico Walter da Silveira são novamente relevantes: “embora muitas vezes acusado de ocidentalismo pela crítica de seu país, Kurosawa assimilou o sentido da tragédia, mas recusou sua ambientação ocidental. ‘Trono Manchado de Sangue’, filme rigorosamente shakespeariano, também rigorosamente japonês.” Um dos pontos mantidos da peça por Kurosawa foi a neblina, transformada em um dos elementos fundamentais do filme. O tempo todo a presença dela se impõe. O diretor parece nos dizer que todo aquele nevoeiro representa a própria visão opaca do guerreiro e esposa, que cegos pela ambição porão tudo a perder. Outra metáfora é a da floresta-labirinto, nela os homens se perdem quando ambicionam o que não lhes é de direito. Surpreendente como Kurosawa consegue misturar o sinistro enredo de Shakespeare com as tradições políticas japonesas, de forma que elas assumam uma veracidade fora do comum. Em suas mãos hábeis o tema da ambição é transposto de uma cultura específica para outra completamente diferente com muita eficiência. A personagem de lady Macbeth traduz e sintetiza a universalidade do tema ambição, com uma atuação calcada em artifícios cênicos do teatro Nô, repleta de frieza e com uma enorme angústia. Para Kurosawa onde tem guerra tem ambição, traição, sede de poder ilimitado, e em paralelo, existem os fantasmas que não param de rondar a consciência humana. O diretor endossa o bardo inglês ao afirmar a capacidade guerreira do homem, mas também a enorme fragilidade dele diante da existência. Essa dicotomia entre a fortaleza e a fragilidade humanas encaixa-se com precisão também quando pensamos na cultura japonesa.
Kurosawa trabalha muito bem com o extracampo em seus filmes e nesse não é diferente. Ele se utiliza do som de corvos para pontuar sinais de mau agouro que estão por vir. Apesar desse som aparecer em diversas situações nunca vemos os animais, apenas escutamos o seu som, eles só aparecem no momento certo da trama, para representar o início da derrocada do guerreiro usurpador. A cena que antecede o assassinato do senhor tem um plano fantástico realizado com muita inteligência e com grande carga simbólica. Ela inicia com lady Macbeth, com sua máscara Nô, tal como Kurosawa havia solicitado, entrando em um cômodo anexo ao seu para pegar o vinho que fará a guarda do senhor dormir durante a vigília. A câmera está fixa defronte à porta do anexo e a nossa visão é de um breu completo na direção da porta. O plano não tem cortes e o que vemos não é só lady Macbeth simplesmente passando pela porta para entrar no anexo, mas sim ela adentrando na própria escuridão e dela retornando com o vinho à mão. Esse é um plano sutil, mas repleto de significados, é como se a personagem estivesse possuída pela própria escuridão e pelos sentimentos mais sórdidos. Mas essa escuridão permeia todo o filme, não há sol em momento algum, apenas o tempo nublado ou chuvoso.
Outro destaque é para a música épica de Masaru Sato, que acentua sempre um tom trágico à trama, sendo bastante fiel e coerente ao espírito shakespeareano. O elemento mais utilizado pelo diretor, o do vento, também aparece nesse filme anunciando o começo da decadência do guerreiro traidor. Logo após sua chegada acontecem duas tragédias, a morte do filho que sai morto do ventre de lady Macbeth e a união das outras fortalezas para combaterem contra ele. Kurosawa é brilhante em resgatar nesse filme não só a beleza da tradição do teatro Nô, mas também todo o misticismo inerente à cultura japonesa. Os corvos, as bruxas e os maus agouros, enfim, mostra que por detrás de tanta luta pelo poder coexistia uma série de superstições que denunciavam a fragilidade humana diante da morte e outras adversidades, fora a própria supremacia da natureza frente ao homem. E mais ainda: a crise de consciência acaba se realizando, ela é terrivelmente concreta e Kurosawa a expõe em uma única cena: lady Macbeth em pleno surto esforça-se terrivelmente em tentar limpar em vão as mãos, tentando retirar o sangue que agora só existia em um só lugar, na sua consciência cheia de culpa. Para Kurosawa, o preço a ser pago pela ambição é demais alto para qualquer humano.
*texto escrito para o catálogo da mostra “Jidaigeki: viajando com Kurosawa ao Japão Feudal”, em 2016.
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