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OS SETE SAMURAIS - Direção Akira Kurosawa

Os 7 Samurais - As Grandes Batalhas do Cotidiano - Kung Fu Life

OS SETE SAMURAIS - (1954) *

Não há nada em minha

Choupana na primavera.

Simplesmente há tudo.

                                  Sodô (1642-1716)

 Os Sete Samurais, apesar de sua longa duração (três horas e vinte e dois minutos) é o filme mais popular de Kurosawa. Logo na abertura do filme fica uma clara citação-homenagem feita aos faroestes americanos, com alguns planos gerais, com diversos homens andando a cavalo em meio às montanhas, como se estivessem em uma fuga ou perseguição, típicos de algum clássico cinema hollywoodiano, gênero cinematográfico tão amado por Kurosawa. Aliás, impossível não observar em Os Sete Samurais a influência formal tão gritante da estética clássica alinhavada pelos grandes mestres do cinema de faroeste. Mas, o maior problema encontrado no ocidente em relação ao filme foi mesmo a sua longa duração. Quando dizemos ocidental nos referíamos em especial aos distribuidores. Algumas versões ocidentais mutilaram de tal maneira o filme, para encurtá-lo e torná-lo mais comercial, que várias partes dele ficaram confusas, ora sem ritmo ora sem nexo, o que tirou muito do seu impacto estético original. 

A história do filme é bem simples. Um grupo de camponeses contrata samurais para defendê-los de bandidos que roubam periodicamente quase toda a sua produção agrícola. No início há uma desconfiança por parte dos camponeses em relação aos  samurais contratados, mas aos poucos os dois grupos fortalecem seus laços de afetividade e confiança. Os samurais ensinam aos camponeses a arte da guerra para que eles possam colaborar na defesa de sua comunidade. E essa simplicidade na história não é casual. Kurosawa sempre disse querer fazer de Os Sete samurais fundamentalmente um filme de entretenimento e para isso o enredo tinha que ser de fácil compreensão. Muito se deve ao personagem de Toshiro Mifune a leveza que emana do filme.

Os Sete Samurais talvez seja o filme em que a dupla Takashi Shimura e Toshiro Mifune tenham o seu melhor desempenho. Mifune interpreta o samurai cômico, que funciona como o aspecto clown do filme, enquanto Shimura faz o líder dos samurais com sua entrega dramatúrgica habitual. Kurosawa forja o personagem de Mifune como um perspicaz observador. Seu personagem é quem consegue melhor ver o quanto os camponeses estavam usando os samurais, ele descobre que os camponeses escondiam as mulheres e alguns mantimentos importantes, inclusive o saquê. Inicialmente, os camponeses são vistos pelos samurais, e por nós espectadores, como indefesos, vítimas incapazes de reagir aos usurpadores. Tais como os mocinhos do faroeste, os samurais chegam ao lugarejo impondo justiça, utilizando a força contra os vilões, mas tal um filme clássico de faroeste, depois vão embora do vilarejo assim que cumprem sua missão. Kurosawa deixa claro seu ponto de vista de que os camponeses ficarão libertos, já os samurais, continuarão rondando sem destino pelo mundo, como fantasmas, esperando para quem sabe ascender aos céus.

Os Sete Samurais - 1954 (Resenha) | Canto dos Clássicos 

Existiu um grande cuidado de Kurosawa na construção de cada um dos sete samurais. Cada samurai foi composto com características que o diferenciava dos restantes. Isso fortaleceu a ideia de que não pode existir um arquétipo de samurai, mas sim, que enquanto sujeito que é dotado de idiossincrasias. Para Kurosawa, um samurai era essencialmente um ser humano, dotados de personalidades desiguais, jamais seres monocromáticos, mas sim cheios de nuances como acontece em qualquer situação ou contexto histórico. Esse foi um grande mérito de Kurosawa como diretor, o de humanizar um homem treinado para ser um guerreiro frio e calculista, adentrar nesse universo de concepções históricas pré-estabelecidas e pré-concebidas, lhe dando tonalidades mais complexas. "Os sete samurais" também pode ser visto como um filme sobre o mundo das aparências. Nada do que vemos no início é exatamente o que é. História e personagens se metamorfoseiam e sugere uma reflexão sobre o mistério da vida, de que só vivendo descobrimos as coisas. Ele trabalha o mundo e a complexidade de vivê-lo, amplia a ideia de poder que trazemos conosco e o quanto ele está enraizado em cada um de nós.       

Mas ao fazer um típico jidaigeki, Kurosawa não queria que ele soasse um filme-museu, isto é, queria realizar algo essencialmente vivo. Como bem sinalizou o pesquisador Donald Richie um filme que não se limitasse à simples reconstrução histórica, habitada por personagens-padrão, mas que insistisse na validade do passado e no significado contínuo histórico. Como parte dessa reconstrução histórica complexa, de um passado que possui um elo com o presente, a música épica e monumental de Fumio Hayasaka é uma parceira inconteste. A criação musical parte de temas típicos da época reconstituída, mas a eles são acrescidos um toque sinfônico contemporâneo. Esse contraste cria um descompasso rítmico interessante, que ora nos arremessa ao passado e ora nos puxa para o presente, em um complexo jogo sensorial que prende a atenção à narrativa do filme. 

Foto de Os Sete Samurais - Os Sete Samurais : Foto - AdoroCinema

Não só a música, mas a criação sonora como um todo é espantosa. A parte final do filme, quando as batalhas finais acontecem, a música praticamente desaparece e surge então sons envolventes. A chuva, as poças de lama, o cavalgar dos cavalos, as chambarras e os gritos dos guerreiros alicerçam essa parte final e formam uma sinfonia própria, preenchem e acentuam o realismo das cenas de luta. A montagem de Os Sete Samurais muito tem sido citada como sendo inspirada no mestre russo Serguei Eisenstein, de quem Kurosawa era profundo admirador. Os planos de curta duração com muita movimentação e montados em sequência, aceleradamente, fomentaram essa comparação entre a obra japonesa e as célebres cenas filmadas nas escadarias de Odessa. Kurosawa jamais temeu esse tipo de comparação entre suas obras e as de outros cineastas, nem mesmo os ocidentais, muito pelo contrário, sentia-se mais engajado nessa história do cinema na qual o Japão sempre participou perifericamente, mas na qual ele Kurosawa sempre se sentiu partícipe, nem que fosse só pela sua visão sobre o cinema. Não à toa, foi o grande responsável pela inserção do Japão no panorama cinematográfico mundial.

 *texto escrito para o catálogo da mostra “Jidaigeki: viajando com Kurosawa ao Japão Feudal (2016)”


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