Pular para o conteúdo principal

... E O OCIDENTE REDESCOBRE O JAPÃO PELAS LENTES DE KUROSAWA

... E O OCIDENTE REDESCOBRE O JAPÃO PELAS LENTES DE KUROSAWA *

POR MARCO FIALHO


“A minha ideologia é o nascer de cada dia,

E minha religião é a luz na escuridão”     

                                                                     Gilberto Gil


A HISTÓRIA DO JAPÃO E O CINEMA

Os dias morosos

Acumulam-se, evocando

Um velho passado. 

                                                  Buson (1716 - 1783)

Tal como a enigmática poética dos haikai, tanto a cultura quanto o cinema japonês eram uma incógnita até 1951. Muito da desconhecida história japonesa, sua organização social e cultural nos foi nutrida e descortinada pelo cinema. Nos anos 50, a mídia não tinha esse caráter tão globalizante como o de hoje, que apenas em um click possibilita se conhecer algo espacialmente muito distante de nós. Foi com Kurosawa que a época feudal japonesa emergiu no imaginário mundial. De repente, os samurais, as gueixas e os xoguns despertaram a curiosidade do homem comum ocidental e foram Kurosawa, Mifune e Shimura, em grande parte, responsáveis pelas imagens que o ocidente começou a forjar do até então misterioso Japão. Pode-se dizer que o sucesso de "Rashomon" (1951) e depois de "Os Sete Samurais" (1954) alçou o Japão para a superfície terrestre, como se antes fosse nada mais nada menos que uma Atlântida submersa no mar do desconhecimento. Depois outros diretores seriam incensados e também reverberariam no Ocidente, em especial os filmes de samurai, até hoje muito cultuados em todo o mundo.  

Mas algumas questões de fundo histórico contribuíram para esse total desconhecimento sobre o cinema japonês. Do século 12 até o século 17, o Japão viveu sob o regime dos xogunatos (supremacia militar de um clã sobre outros), com clãs diversos se revezando no poder, numa guerra sem fim. Mas em 1600, a família Tokugawa modificou a noção de xogunato centralizando politicamente o poder. Assim, de 1600 até 1865, isto é durante 265 anos, o Japão foi governado com pulso forte por uma única família, os Tokugawa. Como o sistema político era mantido militarmente, os samurais (elite guerreira ligada à aristocracia feudal) possuíam poderes e prestígio na Era dos Xoguns e puderam aprimorar um sofisticado código de honra e conduta, o bushido. Já os senhores feudais, os daimyo, tiveram também muito poder. mas sempre limitados pelos Xoguns aos quais deviam obediência.   

Para garantir o poder político, os Tokugawa proibiram os senhores feudais japoneses (daimyo) a ter qualquer contato comercial com estrangeiros. As negociações com os estrangeiros seriam feitas sempre com a intermediação e consentimento do Xogum, autoridade máxima da estrutura política daquele momento histórico japonês. Houve por exemplo, ainda no Século 17, uma tentativa dos espanhóis se estabelecerem na região sul, imediatamente interviu militarmente expulsando espanhóis e assassinando todos os japoneses que haviam se convertido ao cristianismo. Esse fato marcou o isolamento do Japão para o mundo ocidental durante mais de 200 anos.  

O historiador K. M. Panikkar define ideologicamente esse período histórico, comandado pelos Tokugawa como sustentado por "uma teoria da grandeza nacional fundada na disciplina e na aceitação de uma vida dura, que preconiza uma organização militar do país e que coloca como valores supremos a segurança do império e, naturalmente, a fidelidade ao xogunato. Um governo central extremamente poderoso, uma engenhosa máquina administrativa, bem como uma burocracia dirigida por um Conselho de Anciões eram os principais elementos do sistema".

Durante dois séculos o isolamento japonês se tornou um fato incontestável, mas ele ao mesmo tempo nunca foi absoluto. Havia sim relações estabelecidas pelo estado japonês com outros países, assim como permissão para que ocorressem contatos com alguns comerciantes holandeses. Isso permitiu que o Japão tivesse uma noção acerca das transformações que transcorriam na economia europeia, assim como o avanço na tecnologia bélica de alguns países, mesmo se na prática o poderio militar japonês fosse inferior ao europeu.  

Mas ainda na administração dos Tokugawa, em 1853, o Japão recebeu uma importante visita, a dos norte-americanos com as "naus negras", lideradas pelo Comodoro Perry, que iria mudar drasticamente a sociedade japonesa. Era uma visita a princípio amigável, mas que trazia também um tom ameaçador. A mensagem era clara, ou o Japão abria-se para o mundo por "livre e espontânea" pressão, ou o faria por meio de uma guerra. Na altura, o Xogum sabia que não teria forças para esse tipo de enfrentamento. A China já havia tentado afrontar o poderio das potências imperialistas europeias e os resultados foram humilhantes, pois a supremacia bélica dessas nações era desproporcional e desfavorável ao oriente. Não restava alternativa senão capitular e pensar em outras estratégias, que não levassem ao confronto direto. Esse foi o pontapé não só para o capitalismo japonês, mas também para a modernização das estruturas socioeconômicas. 

O caminho japonês para a modernização se deu de forma muito própria. A figura do imperador durante esse longo período do xogunato foi apenas decorativa. Historicamente,  o imperador no Japão possui uma ascendência divina, é um descendente direto da deusa do sol, portanto, constitui-se como uma instituição incontestável. Mas o imperador voltaria a ter uma participação política relevante em um momento muito delicado para a soberania japonesa. E foi na Era Meiji, ou “Governo Esclarecido” (1868-1912), período onde o Japão se transformou rapidamente em uma poderosa Monarquia Constitucional, moderna, livre dos entraves feudais e em pouquíssimo tempo respeitado como uma potência econômica, e sendo também visto assim pelas potências europeias e os Estados Unidos. 

Mas algo deve ficar bem entendido. A abertura do Japão ao mundo no século 19 obedeceu, por um lado, uma lógica de expansão do mercado capitalista, em uma busca irrefreável de ganhar novos mercados consumidores para os produtos industrializados; mas por outro lado, foi uma maneira encontrada pela elites japonesas para sobreviver frente ao inevitável avanço imperialista, que avançava ferozmente nos países asiáticos. Para o Japão, promover a modernização significava manter boa parte de suas tradições culturais, suavizando ao máximo a interferência externa na vida cotidiana. Era fundamental não ser invadido e agredido militarmente tal como foram a Índia e a China. É claro que para isso, o Japão teve que se transformar em uma potência econômica, militar e também imperialista, o que também traria consequências catastróficas mais a frente, como a problemática participação na Segunda Guerra Mundial ao lado da Alemanha Nazista e da Itália Fascista na tríplice entente, coroada por uma das maiores tragédias humanas, o lançamento genocida da bomba atômica em Hiroshima e Nagazaki pelos Estados Unidos, em 1945.

Até a Era Taishô (1912-1926) o que se desenvolveu no Japão foi a progressão democrática de das instituições políticas. Mas a partir da Era Showa (1926-1988) o país mergulhou em um crescente militarismo. Da mesma forma que a Era Edo, também conhecida como a dos Tokugawa, isolou o Japão do mundo por mais de 200 anos, a Era Showa implantou uma fase expansionista e belicista que mergulhou o Japão novamente em uma situação de isolamento. A agressividade da política externa japonesa resultou em retrocessos significativos quando comparados aos avanços que o país vinha agregando desde a transformadora Era Meiji. A cultura, em geral, sofreu um baque extraordinário, com a instalação da censura no país, controlada abnegadamente pelo Ministério do Interior. O nacionalismo exacerbado assumia contornos xenófobos, Kurosawa em sua autobiografia chegou a narrar alguns desses episódios. Diz ainda que no período de 1941-45, época da Guerra do Pacífico, tudo que soasse como jeito "anglo-americano" era proibido. 

Mais uma vez então, o Japão se isolava do mundo, infelizmente em uma época em que o cinema encontrava-se por demais produtivo, repleto de diretores talentosos e produtoras consolidadas. Se observarmos a filmografia dos diretores ativos entre 1941-1945, facilmente se constata a quase nulidade de filmes realizados, sendo a maioria absoluta dos realizados com temáticas militarizadas ou de propaganda. O mais surpreendente, e ao mesmo tempo digno de registro, foi a persistência e a tenacidade de Kurosawa, que conseguiu iniciar a carreira de diretor em 1943, tendo concluído 4 filmes nesse nebuloso período da história japonesa. Mas nada foi fácil, vários roteiros não se transformaram em projetos, foram recusados sistematicamente, o que não impedia Kurosawa de apresentar outros, até vencer pelo cansaço os censores. Por tudo isso, tanto se valoriza o prêmio em Veneza dado a Kurosawa pela obra Rashomon. Ele fatalmente não ganharia esse reconhecimento se não estivesse insistido e lutado tanto por sua profissão.

  

O CINEMA JAPONÊS: UM DESCONHECIDO

Oh, mas que frescor:

Do sino, ao longe, a perder-se

A voz desse sino!

                                                 Buson (1716-1783) 

No Ocidente, a história do cinema japonês é em geral bastante desconhecida, até mesmo devido a esses diversos momentos históricos que levaram o Japão ao isolamento. Poucos livros abordam o tema com essa abrangência, inclusive é muito comum a não inclusão do Japão nas publicações dedicadas à história do cinema mundial. Nesse aspecto, vale ressaltar o trabalho do maior historiador do cinema mundial Georges Sadoul, que dedicou poucas, mas competentes páginas sobre o cinema japonês. O nosso intuito aqui é construir um painel, apenas para melhor situar e compreender o papel de Kurosawa no próprio contexto cultural e cinematográfico.

Mergulhar na história do cinema japonês é também expandir conhecimento em torno de palavras próprias dessa cultura e fazer um esforço para melhor entender essa dinâmica e aproximá-la do universo cultural ocidental. Para isso deve-se conhecer as principais propriedades que envolvem essa formação histórica e os léxicos dela dela derivados.   

Uma das características mais próprias do cinema japonês foi a existência dos benshis, narradores de filmes presentes nas exibições, que comentavam o conteúdo e as histórias dos filmes. Eles se constituíam nas figuras mais poderosas do cinema japonês, pelo menos até os meados dos anos 30. Contraditoriamente, simbolizavam um elemento específico do cinema japonês, um traço próprio, não encontrado nos países ocidentais. Representavam também um entrave às novidades e aos padrões narrativos desenvolvidos e aceitos em outras partes do mundo. 

Mas é importante entender as razões desses entraves. Tradicionalmente, a cultura japonesa apoiava-se no Kabuki e o . A proliferação dos benshis traduzia e dialogava diretamente com essa tradição teatral japonesa. Era natural que esse tradicionalismo resistisse às novas formas narrativas trazidas pelo cinema. A prática dos benshis era uma tentativa de salvaguardar a tradição narrativa da cultura japonesa, mas as imagens que chegavam traziam a cultura ocidental não só nas histórias como na concepção narrativa da montagem dos filmes. E não havia meio de fugir dela. Toda venda de patente para implantação do cinematógrafo já colocava alguns requisitos básicos. Um deles era a exibição de conteúdos trazidos pelo representante da patente. 

Por isso, os benshis, combateram ferozmente à chegada do cinema sonoro. Juntos com os músicos de orquestra, que tocavam nas sessões, faziam greves, mas encontravam eco junto à política xenófoba do governo militarista e nacionalista da época. Os benshis ressabiavam-se com os filmes vindos de fora, o mercado era prioritariamente dos lançamentos autóctones, que superavam os estrangeiros. Como era de se esperar, a estética predominante desses filmes vinha do tradicional teatro Kabuki, não só nos enredos como também na própria encenação. Enquanto o cinema em todo o mundo lutava pela afirmação de linguagem cinematográfica própria, o Japão ainda tinha entraves inerentes ao seu desenvolvimento cultural. Mas vencido esse momento de implantação, o cinema acabou assimilando muito da cultura tradicional, pois mais tarde o cinema seria uma importante janela para a disseminação da cultura mundo afora.  

Apesar dessas dificuldades, o cinema mostrava avanços consideráveis. Já nos anos 30 muitas empresas cinematográficas estavam se consolidando no Japão, buscando um maior profissionalismo e arriscando outras formas narrativas. Desde os anos 20 diversos cineastas já tentavam trabalhar a partir de premissas mais estéticas do que simplesmente aceitar o formato de exibição imposto pelos benshis. Vários cineastas inovaram com filmes de época (jidaigeki), mas havendo também os dramas de pessoas comuns (shomingeki) e filmes modernos (gendaigeki). Os shomingeki não eram nessa época um tipo de abordagem tão usual. A incorporação de se trabalhar com personagens proletários e seus dramas teve em Kenji Mizoguchi (1898-1956) o cineasta mais importante para a consolidação de um cinema japonês popular e com contornos dramáticos e realistas bem delineados, ao mesmo tempo socialmente crítico, em plena segunda metade dos anos 30, época da forte ideologia militarista no Japão.     

Já nos primeiros anos do século 20, artistas se mobilizaram em torno de uma modernização estética da cultura japonesa. A Era Meiji transformou as estruturas econômicas e políticas do país, porém pouco mexeu nas estruturas culturais. Os entraves avolumaram-se, mas uma forma específica de desenvolvimento capitalista no Japão, colaborou para o fortalecimento das produtoras de cinema, o surgimento dos Zaibatsus (grandes corporações financeiras). 

Mas não só o investimento financeiro alimentou o Japão da Era Meiji, houve em paralelo um movimento estético modernizador, o shingeki (teatro novo), ainda no final da primeira década do século 20. O shingeki influenciou-se fortemente pelo método de Stanislavski e nas obras de Ibsen e Bernard Shaw, que propunham novas formas e técnicas interpretativas de aproximação com o espectador. O cinema bebeu dessas vertentes ocidentais, o que inevitavelmente trouxe profundas mudanças para o representar da época. Um exemplo da modernização foi a abolição dos oyama (atores que faziam os papéis femininos). Com a possibilidade de aproximação da câmera, esse artifício começou a soar como grotesco e inapropriado pelos realizadores.

Como bem assinala a professora Maria Roberta Novielli "no começo da terceira década do século, o cinema japonês tinha sofrido uma primeira e determinante transformação. Nascido de uma base preexistente de códigos e modos de representação próprios do teatro e da narrativa tradicional, começava a apropriar-se deles e a constituir-se como arte autônoma e frequentemente em posição privilegiada". Não era então uma proposta de aniquilamento ou anulação da cultura japonesa, mas sim um processo de imiscuí-la com outros próprios da gramática cinematográfica mundial, e nesse ponto, a exibição dos filmes estrangeiros possuíam um papel relevante. Era preciso sublinhar também os cineastas japoneses como artistas criadores, tais como eram vistos os diretores de teatro, os artistas plásticos e literatos. Era preciso reafirmar o cinema japonês como linguisticamente universal, por mais que se preservasse os temas mais tradicionais.   

Vindo nessa leva, além de Mizoguchi nos anos 30, Yasujiro Ozu (1903-1963) desponta como um dos grandes nomes do cinema japonês. Os dramas intimistas e familiares, com ampla utilização da câmera fixa e baixa fundou um estilo próprio de filmar, até hoje muito pesquisado. O lirismo e a poesia narrativa de Mikio Naruse também se configura como um dos mais importantes. Naruse dedicou-se a um estilo chamado de wabi, que ao entender da pesquisadora Maria Roberta Novielli  deve ser compreendido em sua filmografia como "a serenidade inerente à simplicidade, o refinamento do não elaborado, a austeridade que perpassa a pobreza: o fascínio que dela brota permeia de modo indefinível certas atmosferas. 

Ao final dos anos 30, e início dos anos 40, o cinema japonês tinha condições plenas para se equiparar aos mais expressivos do mundo. Estrutura de estúdio, estrelas, diretores competentes, tradição histórica repleta de histórias de aventuras e presente moderno cheio de contradições, ambiente ótimo para o desenvolvimento de enredos promissores. Infelizmente, questões políticas não ajudariam, a consolidação de um poder fortemente militarizado, nacionalista e xenófobo causava entraves categóricos. Controle de conteúdo por meio de uma ríspida censura reprimiu a imensa potência que o cinema japonês demonstrava com obras consistentes e com variadas temáticas. 

Durante a participação japonesa na Segunda Guerra Mundial (1941 - 1945), e depois, no decorrer da ocupação norte-americana (1945 - 1952), o cinema japonês se retraiu, facilitado ainda pela censura registrada nesses dois períodos, mas rapidamente a indústria cinematográfica se reergueu. Os números nesse caso dizem muito. No ano de 1940, o Japão tinha 497 filmes produzidos e 2.500 salas de cinema operando; já em 1944, no período mais crítico da guerra, apenas 46 filmes lançados e 1.000 salas em funcionamento; mas em 1953, surpreendentemente já eram produzidos 302 filmes e operavam 4.000 salas no país, já no período da reconstrução, marcada pela ocupação norte-americana. 

É importante registrar o claro incômodo da sociedade japonesa frente à ocupação norte-americana, muito devido às bombas atômicas covardes lançadas em Hiroshima e Nagazaki (1945), que impuseram um fim trágico à guerra. Ainda em 1945, institui-se o CIE (Civil Information e Education Section) que funcionava como um novo departamento de propaganda pró-ocupação, responsável entre outras coisas pelo controle da produção cinematográfica no Japão. Entre as medidas adotadas havia até a proibição de filmes com cenas com chambara, base dos filmes jidaigeki (filmes de época). Os filmes de samurai estavam em suspenso, por representar o atraso do antigo império militarista japonês. A censura do período da ocupação (1945 - 1952) trazia ainda entraves à produção, pois os roteiros antes de serem filmados passavam pelo crivo de aprovação do CIE e os grandes estúdios eram os mais visados, o que provocou um aumento de produtoras independentes, devido às insatisfações com a censura. Na verdade, os cineastas japoneses saíram de um esquema cercado de proibições e propagandas dos militares para outro igualmente cerceador, o da ocupação norte-americana. Por isso, os japoneses tinham a clara sensação que se tinha trocado seis por meia dúzia.         

Por sorte, a maioria dos estúdios japoneses não sofreu destruição no período da guerra. Kioto e Tóquio sempre concentraram o maior número de produtoras de cinema, o que fez com que o cinema japonês pudesse se erguer sem grandes percalços depois da hecatombe das bombas atômicas dos norte-americanos.   

Durante a ocupação, os sindicatos foram muito estimulados, com a finalidade de desestabilizar internamente as grandes produtoras, ainda impregnadas pela ideologia e por profissionais ligados ao antigo regime político militarista. Várias greves estouram e a mais grave na Toho, a maior produtora japonesa, cujo objetivo era as melhorias das condições de trabalho. Dessa greve surge um racha na Toho, com a saída de atores e diretores para fundarem a Shintoho (Nova Toho). Mas logo, a ocupação se deu conta que estava incentivando uma agitação política ligada à ideologia marxista. Em 1950, o macarthismo atinge o Japão e diversos profissionais do cinema são demitidos por serem acusados de comunistas. 

Do ponto de vista estético, o que influenciou muito o cinema no pós-guerra foi neorrealismo italiano, com seus dramas sociais profundos, filmagens em locações e com câmeras mais leves. Como consequência notou-se uma proliferação de produtoras independentes, o que até então era incomum, já que no Japão o cinema estava atrelado às grandes corporações econômicas.

Curiosamente, foi justamente no final da ocupação, onde os jidaigeki eram malvistos pelos norte-americanos, mas que os filmes neorrealistas faziam sucesso junto aos artistas japoneses que uma distribuidora de filmes italianos no Japão resolve inverter a mão e levar filmes japoneses para a Itália. Foi assim que Kurosawa viu incredulamente seu filme Rashomon ser indicado para participar do Festival de Veneza e logo depois ser laureado com o prêmio máximo, o Leão de Ouro. Esse prêmio representou uma retomada dos jidaigeki para o cinema japonês. A partir desse momento o interesse do ocidente pelo Japão voltou-se para os jidaigeki, era o exótico atraindo os olhares curiosos e ciosos por uma cultura diferente. Agora, em plena década de 50, passados os tempos da Era Meiji, onde os japoneses tinham que soar modernos para o mundo, e passado também o tempo da militarização, onde o Japão assume uma faceta agressiva e imperialista, é chegada a hora do país por meio do cinema mostrar o quanto desconhecido e fascinante era o universo cultural nipônico. E quem deu esse pontapé inicial foi Akira Kurosawa.    

A partir desse prêmio em Veneza, a notabilidade de Kurosawa tanto no Ocidente quanto no Japão alçou patamares impressionantes. Vários cineastas japoneses foram sendo descobertos, a exemplo de Kenji Mizoguchi e Masaki Kobayashi. Curiosamente, um pouco mais tarde, em 1960, o cinema japonês ganhava novos ares com a eclosão de sua Nouvelle Vague, com o filme Noite e neblina no Japão, de Nagisa Oshima, cujo próprio título sugere um visível estreitamento espiritual com a Nouvelle Vague francesa, em especial ao Noite e neblina (1955), de Alain Resnais. Esse cinema rompia com vários ditames e práticas do cinema clássico japonês, representado pela tríade Kurosawa, Ozu e Mizoguchi. O mestre Yasujiro Ozu, devido suas temáticas familiares e urbanas, demorou mais a ser descoberto no ocidente. Após o sucesso de Kurosawa, os filmes escolhidos para serem exportados eram basicamente os jidaigeki    


KUROSAWA E O CINEMA

O mundo é orvalho,

O mundo é orvalho sim,

Mas há um porém...  

                                                       Issa (1763-1827)

Se no Japão Kurosawa carregou a pecha de ser ocidentalizado demais, no exterior ele revelou para o olhar ocidental um Japão fascinante e historicamente desconhecido, muitas vezes áspero, violento e cheio de batalhas de clãs, um país rigidamente hierárquico, além de mostrar personagens disciplinados e fiéis às ricas tradições. Mas a tal tendência ocidental de Kurosawa, talvez esteja mais na forma de conceber o cinema. É sabido a fascinação dele pelo cinema norte-americano (destaque para John Ford) e europeu (muito do expressionismo alemão). Na sua autobiografia ele lista os filmes assistidos por ano, a maioria ocidentais, o que o fez afeiçoar por uma determinada maneira de se pensar e narrar um filme. Sem contar a obsessão de Kurosawa pela literatura ocidental, em particular a russa do século 19 (Turgueniev, Tolstói e Dostoievski, sobretudo no humanismo deste último, no qual era por demais entusiástico). Mas a ocidentalização dele encerra-se por aí, no aspecto artístico, pois nas temáticas Kurosawa sempre foi japonês ao extremo, basta assistir  a qualquer filme que realizou no decorrer da carreira. 

A questão da ocidentalização de Kurosawa traz a lembrança de um artigo, escrito em 1955 por Andre Bazin, o mais proeminente crítico de cinema francês, sobre o impacto que o filme "Rashomon" provocou nos meios cinematográficos europeus. Diante da qualidade inconteste da obra, Bazin diz não saber ao certo o quanto aquele filme representava o cinema japonês, já que era a única obra até então conhecida daquele país, mas enfatiza, surpreso, que o filme trazia em si, incorporado, todos os atributos e ditames cinematográficos ocidentais, isto é, do ponto de vista estético e técnico, a obra de Kurosawa de nada destoava dos grandes filmes produzidos na Europa e Estados Unidos. O crítico diz mais, mas seria oportuno e mais adequado aqui ouvir a própria voz de Bazin: 

"País de cultura antiga e de fortes tradições, o Japão parece ter assimilado o cinema com tanta facilidade quanto todas as técnicas ocidentais. Mas assim como estas, longe de destruir-lhe a cultura, foram imediatamente integradas a ela, e o cinema situou-se de pronto e sem conflito ao nível da arte japonesa em geral."

Cabe por isso mencionar, que a aproximação de Akira Kurosawa com o cinema deu-se por intermédio do irmão mais velho, que selecionava os filmes a serem vistos e o acompanhava às sessões de cinema. Esse irmão chamava-se Heigo e trabalhou como benshi (profissionais que comentavam ao vivo os filmes mudos, prática muito comum no Japão das décadas de 20 e 30), o que lhe conferia muito prestígio. Segundo Akira, os benshi "não somente recontavam a história; eles faziam crescer seu conteúdo emocional, atuando nas vozes e nos efeitos sonoros e proporcionando descrições evocativas dos eventos e imagens da tela."

Com certeza, a admiração de Akira por Heigo o aproximou muito do cinema. As conversas onde Heigo falava com autoridade dos filmes fascinava o irmão mais novo, já adolescente e encantado com as artes. Mas o advento das fitas sonoras mudou o destino de muitos. Os personagens dos filmes passaram a falar e os benshis foram tornando-se anacrônicos e desnecessários, e sua presença  foi sendo gradativamente descartada. O irmão Heigo não suportou o insucesso e a pressão de ter que buscar outra carreira, e aos 27 anos, suicidou-se. 

Akira teve que encarar essa perda, afinal, Heigo não era só querido por ser irmão, mas também por ser um grande ídolo, um espelho. Muito da perseverança e obstinação que tanto se constata acerca do profissional Akira Kurosawa se deve a essa paixão, que para ele soava como uma dívida de gratidão ao irmão, a ser paga pelo desenvolvimento de um perfeccionismo sem igual. Claro que só isso não bastaria, existia também um talento inequívoco, uma vocação artística incomum, uma necessidade de se expressar desde muito cedo revelada e na qual discorreremos a seguir. 

Desde cedo, a educação de Akira foi propensa à rigidez. O pai impôs aos Kurosawa disciplina, o que para o nosso personagem foi sempre de difícil assimilação. Existia uma imposição física na educação que perpassava os esportes e as atividades físicas em geral. Já que a mãe comportava-se como uma mulher típica da era Meiji, que dedicava-se ao lar para permitir o pleno trabalho de seus maridos. Vale lembrar que o Japão atravessava a Era Taishô (1912-1926), que fora iniciada logo após Era Meiji (1968-1912 - época na qual a transformação capitalista foi avassaladora) e começava a desenvolver um perfil fortemente militarista e disciplinador. O Japão nessas duas Eras se impôs como uma potência econômica e militar. Akira era então um frágil estudante da escola primária, pouco propenso às atividades físicas, para o desgosto do pai. Os professores de Akira, em geral, eram muito rigorosos e punitivos, mas para a sua sorte, na escola primária apareceu no caminho o professor Seiji Tachikawa. 

O sr. Tachikawa era um desses professores especiais, capazes de transformar pessoas. Quando recebeu na classe os alunos Akira e Keinosuke Uekusa (futuro coroteirista de Kurosawa em vários projetos), a visão libertadora de mundo salvou a alma do nosso personagem. Vale aqui transcrever esse momento crucial pelo qual Akira, mesmo já idoso, demonstra-se devedor:

"No início da Era Taishô (1912-1926), quando iniciei minha temporada escolar, a palavra professor era sinônimo de pessoa assustadora. O fato de, nessa época, ter encontrado tão livre e inovadora educação, com tão grande impulso criativo por trás dela - que eu tenha encontrado professores como o sr. Tachikawa - eu reputo como uma benção das mais raras."         

          O estímulo do sr. Tachikawa foi de valorização profunda, psicológica e social, em relação ao talento do então menino Akira. Quando Akira realizou um desenho contendo manchas e borrões a turma desatou a rir debochadamente, mas o mestre fez todos calarem-se ao emitir elogios rasgados ao trabalho de Kurosawa, causando a seguir um silêncio constrangedor em toda classe. 

Outros dados da formação de Kurosawa podem ser acrescidos como elementos básicos que se somariam e agregariam ao talento artístico que desde sempre aflorou. As aulas de caligrafia é um desses exemplos. Nelas, as habilidades manuais para o desenho foram aprimoradas, Akira menciona na sua autobiografia a facilidade que tinha na caligrafia japonesa (shodô) e o reconhecimento social desse talento. Seu pai tentou fazer de Kurosawa um lutador de kendô, um tipo de artes marciais muito popular no Japão, na qual, no lugar de espadas se utiliza um pedaço de madeira, mas apesar da reconhecida dedicação, faltava o talento necessário. Mas, a luta até foi proveitosa nas futuras coreografias que viria a filmar no decorrer da carreira como cineasta.      

Quando completou 18 anos (1928), Kurosawa teve um grande acesso aos livros. Segundo ele, o Japão vivia um boom de livros ien, que eram chamados assim por custarem apenas um ien. Nos sebos, esses mesmos livros eram encontrados ainda mais baratos, pela metade do preço, ou até menos. Nessa época se deu uma maior aproximação de Kurosawa com os clássicos da literatura estrangeira e japonesa, sem hierarquia de gosto e leitura. Também começou a frequentar teatro, folhear livros de arte nas livrarias (eram caros para comprar) e ir ao cinema com o irmão Heigo. 

Em 1928, Akira já era um jovem mergulhado nas artes, pintava, na verdade achava que se transformaria em um pintor profissional, mas o cinema, em paralelo,  também o sensibilizava bastante. Em 1929, houve uma aproximação de Kurosawa com movimentos marxistas, em especial com a Liga de Arte Proletária. A necessidade de transformação se ampliava também para o mundo, era pungente se expressar perante a vida. Mas enfim a arte falaria mais alto, depois de tanto Dostoievski, Gogol, Murnau, Pudovkin, Cezanne,  John Ford, Eisenstein, Chaplin, Buñuel, entre outros tantos, o bombardeando diariamente, incessantemente, o inconsciente já havia decidido, por mais que o consciente ainda o traísse, ou o lançasse dúvidas. 

Ao sentir que a Liga das Artes Proletárias tendia para um estilo realista de arte, Kurosawa foi se distanciando dela. As informações e as ideias de Kurosawa já estavam muito adiante das noções de arte engajada ali pretendida e arduamente defendida. Caso ali permanecesse,  o que aconteceria a ele seria uma limitação do potencial artístico em prol meramente de uma leitura realística do mundo. Pensar o mundo já fazia parte da espinha dorsal do pensamento de Akira, ter uma visão crítica também, mas nunca aceitaria para si ideias que o limitassem como indivíduo, por mais justas que essas poderiam lhe soar. Como diretor, seus filmes sempre perpassaram pelo indivíduo na busca de se entender a complexidade do estar no mundo. Antes de tudo, o homem era o mundo de Kurosawa e isso não traduzia um desprezo pelo mundo, e sim uma afirmação da presença humana no mundo, um credo potente. Daí a fixação por Toshiro Mifune, por acreditar que ele expressava como poucos a potência humana que ele como artista buscava tanto realçar nos personagens e na obra.

Kurosawa entraria profissionalmente no mundo do cinema em 1936, aos 26 anos de idade e três anos depois do suicídio do irmão. Foram três anos de angústia e indecisões, de decepção com o suposto talento dele como pintor. Mas quando viu a oportunidade de adentrar o mundo do cinema como diretor assistente na PCL (Photo Chemical Laboratory) por intermédio de um anúncio de jornal não titubeou muito e aceitou o desafio quase de pronto, com o apoio dos pais, também angustiados com o futuro incerto do filho caçula. 

A PCL era uma empresa relativamente nova, havia sido fundada em 1933. Originalmente a PCL atuava como uma associada da Nikkatsu, uma das grandes produtoras dos anos 20 e 30 no Japão. De 1929 até 1932, a empresa tinha como foco de trabalho a implementação da camada sonora dos filmes. Ao se tornar uma produtora de filmes, em 1933, pode praticar um esquema de produção mais profissional, menos familiar, o que era muito usual na época e instaurou um sistema, à exemplo do norte-americano, onde o produtor era o responsável pelo filme e poderia intervir em várias fases da produção. Em 1936, a PCL foi incorporada a Toho, cujo proprietário vinha do ramo ferroviário. A Toho se transformaria, durante muitos anos, em uma das maiores produtoras de cinema do Japão.      

A entrada de Kurosawa na então PCL foi realmente transformadora para a carreira e vida do jovem aspirante a artista. Lá ele foi se familiarizando com a função de assistente até se firmar trabalhando com o diretor Kajirô Yamamoto, um dos maiores diretores da empresa. Por sete anos atuou como assistente de direção e eventualmente escrevendo roteiros para outros diretores. Como assistente, demonstrou uma aplicação fora do comum, desenvolvendo uma disciplina invejável. Era também atribuição sua, dirigir algumas cenas, quando designado pelo diretor. O que muito contribuiu para o sucesso e realização de Akira foi a enorme confiança que Yamamoto lhe conferia, a amizade entre os dois cresceu tanto que extrapolou os limites do trabalho nos estúdios. 

Esse tempo como assistente, forçosamente, o fez se relacionar com os diversos departamentos existentes em uma filmagem e lhe garantiu uma grande vigorosa experiência dentro de um set cinematográfico. A passagem de Kurosawa para a direção foi apenas uma questão de tempo, assim como o posterior sucesso. 

Em 50 anos de profissão (1943 a 1993), Kurosawa filmaria 30 filmes. Após o primeiro trabalho como diretor (Sanshiro Sugata) conseguiu emplacar quase um filme por ano, mantendo o reconhecimento pela qualidade dos filmes. Kurosawa oscilaria a filmografia entre os gendaigeki (dramas contemporâneos) e os jidaigeki (filmes de época), sendo os filmes de samurai os maiores sucessos. Mas em 1952, realizaria a obra-prima "Viver", um dos filmes mais expressivos da carreia, com Takashi Shimura vivendo um burocrata de uma repartição pública que descobre estar com uma doença terminal, e a partir de então entra em crise, desesperado em encontrar algum sentido à sua vida. Conclui que o que melhor podia fazer pela própria vida envolvia também a comunidade na qual estava inserido. Takashi Shimura atuou em quase todos os filmes de Kurosawa, tendo estabelecido uma comunhão incomum de quase quarenta anos de trabalho. Tal como Kurosawa, Shimura exigia muito de si mesmo, sempre julgava que podia dar mais de si para o personagem. Essa exigência e busca incansável pelo melhor está explicito em cada papel por ele interpretado. Como ator, os recursos técnicos utilizados eram impressionantes, basta ver a variedade de papéis que fez no decorrer da carreira. A interpretação e entrega em "Viver" (1952), é por demais tocante, impossível não se emocionar com a atuação que imprime no filme. 

Outra obra exemplar de Kurosawa foi "Barba Ruiva", obra derradeira do produtivo trio Mifune/Shimura/Kurosawa. Talvez o filme onde a austeridade típica da direção de Kurosawa mais fique evidente e assistimos ao melhor trabalho de ator de Mifune. Mas foi justamente nesse filme que a briga entre o diretor e o ator foi de tal forma explosiva que poria fim a uma das parceria mais profícuas do cinema mundial. O trio Kurosawa/Mifune/Shimura foi um dos mais bem-sucedidos e reconhecidos da história do cinema, juntos eles filmaram expressivos 15 filmes. Kurosawa foi um dos que mais se impressionou quando Mifune chegou à produtora Toho para fazer testes para um filme de Kanjiro Yamamoto. Confessou o quanto ficou impressionado com a presença que Mifune impunha na atuação. Mifune foi combatente na Segunda Guerra Mundial e aceitou o desafio de ingressar nas artes, após a imperiosa derrota japonesa no conflito. A parceria deles ocorreu assim, instantaneamente, cumplicidade à primeira vista. Mifune ingressou na Toho em um momento delicado da produtora, de uma greve do sindicato onde diversos atores expressivos saíram da empresa e a busca por novos quadros tornou-se uma necessidade. Em 1965, durante as filmagens de “Barba Ruiva”, Mifune e Kurosawa se desentenderam e nunca mais viriam a trabalhar juntos. 


Depois de "Barba Ruiva" (1965), a produtividade de Kurosawa registra pela primeira vez na carreira uma queda. Em 10 anos realizou apenas um filme, inclusive o único grande fracasso de bilheteria dele como diretor, "Dodeskaden" (1970), cujo cenário era a de uma favela de Tóquio. Um ano após, em 1971, Kurosawa deprimido, sem esperança e desanimado profissionalmente, tenta o suicídio. Para a sorte do mundo e dos inúmeros admiradores ele sobrevive e inicia uma carreira internacional expressiva, filmando na União Soviética o filme "Dersu Uzala". 

Sem apoio e desprezado no Japão conta com a ajuda de grandes cineastas norte-americanos, como George Lucas e Francis Ford Coppola, e realiza alguns filmes nos Estados Unidos, retornando triunfalmente ao sucesso e a um reconhecimento internacional inconteste. Aos poucos o prestígio retornou e o talento reaparece novamente em dois importantes épicos: "Kagemusha" (1980) e "Ran" (1985). Nesses dois épicos retumbantes, demonstra domínio absoluto do uso das cores, se aproveitando muito do reconhecido talento para as artes plásticas. São filmes com imagens belíssimas, plasticamente admiráveis, com planos construídos como se fossem pinturas em movimento. 

Essa retomada revela um Kurosawa maduro, pleno e consciente das capacidades artísticas e produtivas do que poderia oferecer. Em 1990, dirige o poético e singelo "Sonhos", onde recria um quadro de Van Gogh e coloca um personagem entrando e passeando pelos campos inundados de girassóis pintados pelo mestre holandês. Um ano depois realiza o tocante "Rapsódia em Agosto", onde coerente com a extensa obra já produzida até então, promove uma reconciliação possível, sensata e delicada acerca do trauma atômico impingido pelos norte-americanos ao povo japonês. Quando em 1998, ele faleceu, o mundo já o reconhecia com muita justiça como um dos grandes artistas do século 20, que soube expressar a dor desse tempo repleto de guerras. Mesmo permanecendo até o final da vida crítico e cético em relação às instituições políticas, jamais deixou de acreditar na capacidade de reação do homem em prol de um mundo melhor.    

        

O ESTILO KUROSAWA 

Junto ao velho lago

Uma rã a preparar-se

E ploc dentro d’água.    

                                              Bashô (1644-1694)

Quando certa vez foi perguntado sobre o estilo de filmar e técnica, Kurosawa foi econômico, mas preciso: "quanto a escolha dos movimentos de câmera é tudo muito simples: se o personagem estiver parado a câmera deve permanecer igualmente parada. Mas quando esse personagem se movimentar a câmera também deve se movimentar." 

Evidente que a explicação simplificada dada pelo diretor é extrema, mas muito revela acerca do estilo, sensibilidade, respeito pela observação, humildade frente ao trabalho e uma atitude que beira a quase uma subserviência em relação aos atores. Essa é uma diferença estilística fundamental do uso da câmera entre o mestre Kurosawa e o mestre Ozu, pois é sabida o quão diferente constroem-se e estruturam-se tanto nos planos quanto na montagem. Mas é justamente a relação entre cineasta e câmera que deve ser considerada fundamental na expressividade e coerência de cada um dos diretores, tão marcantes, mas tão diferentes entre si.

Ao contrário de Ozu, Kurosawa sempre foi fascinado pelo movimento. Segundo ele "Os sete samurais" fora concebido para ser puro movimento. O controle sobre as cenas era absoluto, todas eram planejadas e executadas para se atingir o ritmo pretendido. Kurosawa trabalhava o movimento a partir da organização de vários planos numa determinada cena. As cenas possuíam curta duração, mas a montagem com muitos cortes dentro da cena davam a sensação de movimento tão perseguida por Kurosawa. Apesar de sempre estar preocupado com a questão técnica nos filmes, nunca permitiu que esse aspecto ofuscasse o primordial, a prerrogativa humanista da obra. Não à toa que em sua autobiografia salientou o quanto admirava o contemporâneo escritor francês Georges Simenon (1903-1989), criador do famoso personagem policial, o Sr. Maigret. Dois pontos chamavam a atenção no escritor. Primeiro a narrativa simples e envolvente, e segundo a forma criativa com que o personagem Maigret solucionava seus casos, partindo sempre da profunda compreensão acerca da natureza humana.

Quanto à equipe, Kurosawa variava pouco. Os parceiros mais constantes foram o músico Fumio Hayasaka, no qual o diretor tinha verdadeira adoração, dizia que o completava, segundo Kurosawa, sua música fazia ele ver melhor os filmes, devido a precisão com que ela se inseria no contexto fílmico. A morte do músico, aos 41 anos, abalou Kurosawa, que declarou haver perdido além de um amigo, um gênio. A partir de "Trono Manchado de Sangue" (1957), Masaru Sato passa então a ser o músico em todas as obras até "Barba Ruiva" (1965). Outro profissional importante foi Yoshiro Muraki, diretor de arte, responsável pelo apuro visual vários dos filmes jidaigeki. Impossível não reparar o esmero dos cenários e figurinos, que muito espelhavam a preocupação de Kurosawa com a direção de arte. Somava-se a isso o especial talento para as artes plásticas. Ele sabia muito bem como usar isso em benefício dos filmes, desenhando os planos a serem filmados para a equipe. Quem já pôde ver alguns os storyboards de Kurosawa, pode constatar que eram desenhos magníficos, alguns verdadeiras obras de arte.   

Em quase todos os trabalhos de Kurosawa o elemento natureza aparece em formato de chuva e vento. Tanto um quanto outro serviam para o diretor anunciar um ponto de virada na história ou acentuar um momento de maior carga dramática. Para os atores e equipe em geral essas eram situações de grande tensão no set, que exigiam muito de todos, pois a chuva e o vento nas obras de Kurosawa eram sempre muito intensos. Pensar, por exemplo na chuva da longa sequência da luta final de "Os Sete Samurais", ou na chuva ininterrupta no portal de "Rashomon". A chuva de Kurosawa significava a beleza e a força da natureza, serve para impor limites, e humildade, pois o fenômeno chuva não é algo que pode ser controlado pelo homem.         

No trabalho com atores Kurosawa era estranhamente conhecido como muito amável. Mas já o mesmo não se pode dizer de seu trato com a equipe técnica. O que mais o irritava no dia-a-dia era quando a chuva ou um vento que ele solicitava para uma determinada cena não aconteciam conforme planejava, isso o tirava completamente do sério. Por essas coisas era famoso por cobrar demais da equipe. Mas o que faria então Kurosawa tratar tão bem os atores? Deve se considerar que ele sabia da importância dos atores para cada cena e o quanto que um erro técnico poderia atrapalhar o desempenho deles. O carinho dele era tanto pelos atores que escrevia personagens já sabendo qual ator o representaria. Essa atenção também mostrava a importância que Kurosawa atribuía aos personagens para que o filme fosse crível, verdadeiro.

Observando a construção dos personagens de Kurosawa percebe-se a influência muito marcante da estética expressionista. A expressividade enfatizada pelos olhos esbugalhados também são traços assumidos em seus filmes, assim como a fotografia contrastada em preto em branco, paixão adquirida na juventude quando frequentava as salas de cinema com seu irmão mais velho. Mas será que o trabalho de corpo nos filmes, incluindo aí os olhares, seriam mais uma reminiscência do kabuki? Ou esse estilo de representar o corpo em Kurosawa viria de um somatório de influências, ora autóctone ora importada? 

Já no final da carreira ele revelou o encantamento pelo teatro e o quanto buscava inserir essa forma de expressão na obra, mesmo parecendo ela tão distante do cinema. Basta lembrar o quanto de "Trono Manchado de Trono" foi construído tendo o Nô como referência. Inclusive, essa influência do Nô pôde ser sentida desde o primeiro filme, Sugata Sanshiro (A Saga do Judô). Muitos críticos veem nas obras de Kurosawa ecos de Eisenstein, John Ford, Chaplin, para citar os mais expressivos. Muito da concepção de montagem esbarraria em conceitos de Eisenstein, alguns aspectos relacionados à interpretação dos atores. De John Ford, a própria composição dos planos e a narrativa de fácil entendimento, com destaque para a valorização da ação do homem como figura edificante e proeminente do processo histórico japonês, lhe conferindo sistematicamente um viés épico. Já as pitadas cômicas de Kurosawa eram muito inspiradas pelas lembranças de irônicas de Chaplin. Kurosawa talvez fosse, como artista, um símbolo da facilidade encontrada no Japão pós Era Meiji, de incorporar influências estéticas externas e ainda assim permanecer tão japonês na sua arte como Ozu, considerado o mais japonês dos cineastas japoneses.               

Kurosawa fez parte de uma geração que entendeu o cinema como uma arte resultante do processo de modernidade da humanidade, como uma arte universal, factível de atingir pessoas de qualquer parte do planeta. Essa visão o levou a se abrir às influências artísticas amplas, em estudar arte de uma forma geral, em especial a pintura que tanto amava, a literatura, o teatro e o cinema de todo o mundo. Apesar de sempre filmar temas característicos do Japão, esse aspecto nunca foi o mais importante em sua obra. O traço mais marcante e que era buscado sistematicamente era a da humanização. Kurosawa apesar de aparentar cético, deixava sempre escapar nos filmes um traço de um romantismo, camuflado ao máximo, pois acreditava na possibilidade do homem dialogar e encontrar por meio de sentimentos humanitários novas formas de convívio social. O final de Rashomon é prova cabal disso: a crueldade do filme se flexibiliza quando a esperança humana é concentrada na vida de um bebê.       

*Escrito para o catálogo da mostra Jidaigeki: viajando com Kurosawa ao Japão feudal (2016).

GLOSSÁRIO

Benshi - ”aquele que comenta"; narradores que durante as projeções do cinema mudo eram responsáveis pela descrição das tramas e dos ambientes. Além disso, expunham ao público as diferenças culturais com outros países.

Bushido - "o caminho do guerreiro", o código de ética dos samurais.

Chambara - termo onomatopeico derivado do som estridente das espadas durante as lutas.  

Daimyo - o chefe de uma linhagem aristocrática militar, proprietário de terras vastas e no comando de um exército pessoal.

Gendaigeki - filmes de ambientação contemporânea.

Haraquiri - consiste na obrigação ou dever do samurai em suicidar-se em determinadas situações, ou quando julga ter perdido a sua honra. Significa literalmente "corte estomacal". Esse suicídio ritual é também denominado seppuku.Jidaigeki - filmes de época.

Kabuki - forma de teatro popular tradicional do Japão, que surgiu no Período Edo, no início do século XVII, todo representado por homens, inclusive os papéis femininos. Seu nome é formado a partir da junção Ka = cantar, Bu = dançar e Ki = representar. Há no Kabuki, o momento Mie, quando um ator fica imóvel, congelado, para expressar o auge dramático do personagem. Os cenários e as vestimentas se caracterizam pelo uso simbólico das cores e os rosto pela maquiagem brancas, com boca e olhos bem delineados.

Macarthismo - foi um movimento iniciado nos Estados Unidos, em 1951, pelo senador Joseph McCarthy, com a finalidade de perseguir tanto comunistas quanto aqueles que praticavam, no seu entendimento, atos contra os Estados Unidos. 

- é um gênero teatral tradicional japonês e uma das formas teatrais mais antigas que ainda sobrevive no mundo. O termo "nô", que em japonês significa talento ou habilidade, define uma forma narrativa que em muito se diferencia da narrativa dramática ocidental. Nesse gênero, os atores não estão lá representando, mas sim assumindo o papel de "contadores de histórias" e usam os movimentos e a aparência para sugerir o que está sendo contado. O objetivo da encenação no teatro nô  é atingir o máximo de significação com o mínimo de expressão. Suas narrativas são cheias de deuses, guerreiros e mulheres enlouquecidas. O protagonista da narrativa é o único que usa uma máscara. Normalmente ele é um espírito errante, que narra de forma lírica sua nostalgia, ajudado por um coro. O teatro nô surgiu a partir de antigas formas de dança e dos dramas apresentados em santuários e templos japoneses, entre os séculos 12 e 13. Entre os séculos 14 e 19, ele era apresentado em cerimônias especiais por atores profissionais para as classes da elite da então sociedade feudal do Japão.

Oyama - é o ator do kabuki que interpreta papéis femininos.

Ronin - Samurai sem senhor.

Shingeki - "teatro novo", nascido no início do século 20 e inspirado nas teorias de Stanislavski e nas obras de Ibsen e Bernard Shaw.

Shomingeki - dramas sobre pessoas comuns.

Wabi - ideal estético que indica o sóbrio refinamento próprio da simplicidade.

Zaibatsu - consórcio monopolista de grandes empresas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAZIN, ANDRE. O Cinema da crueldade. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

CORDEIRO, Renata. Viagem ao Japão. São Paulo: Landy Editora, 2004. 

EBERT, Roger. Grandes Filmes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

KUROSAWA, Akira. Relato Autobiográfico. São Paulo: Estação Liberdade, 1991.

LABAKI, Amir (org.). Folha Conta 100 anos de Cinema. Rio de Janeiro: Imago, 1995. 

MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: entre a realidade e o artifício. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2007. 

NOGAMI, Teruyo. À Espera do Tempo: filmando com Kurosawa. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

NOVIELLI, Maria Roberta. História do Cinema Japonês. Brasília: Editora Unb, 2007.

PANIKKAR, K. M.. A Dominação Ocidental na Ásia. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1977. 

RICHIE, Donald. O Filmes de Akira Kurosawa. São Paulo: Brasiliense, 1991. 

SADUOL, Georges. A História do Cinema Mundial - 2 vols.. São Paulo: Martins, s/d.

SILVEIRA, Walter da. Fronteiras do Cinema. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1966.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ÁLBUM DE FILMES VISTOS EM 2023 - 340 filmes

DESTAQUES FILMES INTERNACIONAIS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-filmes-internacionais-em-2023.html?m=1 DESTAQUES FILMES BRASILEIROS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-de-2023-filmes-brasileiros.html?m=1 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 (cinefialho.blogspot.com) ESPECIAL FIM DE ANO: 14 VÍDEOS DO BATE-PAPO CINEFIALHO DE 2023: O REINO DE DEUS (2023) Dir. Claudia Sainte-Luce Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ GUAPO'Y (2023) Dir. Sofía Paoli Thorne Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ AS GRÁVIDAS (2023) Dir. Pedro Wallace Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ À SOMBRA DA LUZ (2023) Dir. Isabel Reyes Bustos e Ignacia Merino Bustos Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ PONTES NO MAR (2023) Dir. Patricia Ayala Ruiz Vídeo:  Marco Fialho (@ci

GODZILLA - MINUS ONE

Texto de Marco Fialho O maior mérito de "Godzilla - Minus One" está na maneira como o diretor Takeshi Yamazaki conjuga a história narrada com o contexto histórico do Japão pós segunda guerra. O monstro Godzilla é fruto direto do efeito nuclear provocado pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos.  O filme funciona como uma resposta à vergonha japonesa ao difícil processo de reconstrução do país, como algo ainda a ser superado internamente pela população. A partir desse fato, há um hábil manejo no roteiro para que a história funcione a contento, com uma boa fluência narrativa.  Aqui o monstro é revelado desde o início, não havendo nenhuma valorização narrativa, ou mistério, sobre a sua aparição. Mas se repararmos com atenção, "Godzilla - Minus One" é  um filme de monstro, embora se sustente tendo na base um melodrama de dar inveja até aos mais radicais da safra mexicana dos anos 1950. A história parte de Koichi, um piloto kamikaze que se recusa a executar uma or

UMA BELA MANHÃ (2022) Dir. Mia Hansen-Love

Uma jovem mulher e seus percalços numa França decadente Texto de Marco Fialho Como é bom poder assistir a um filme de Mia Hansen-Love, essa jovem cineasta já com uma carreira sólida e profícua, e vendo ela voltar para os filmes com a sua marca indelével: os dramas românticos arranhados pela dureza da vida cotidiana, de um realismo que caminha entre a vontade de viver e sonhar e a difícil realidade de um mundo que impõe doenças e relacionamentos amorosos complicados.  Um dos pontos a destacar em "Uma bela manhã", esse drama intimista e extremamente sensível, são as atuações dos atores, em especial o belíssimo trabalho de Léa Seydoux como Sandra e a arrebatadora interpretação do experiente ator Pascal Greggory como o pai, um professor e intelectual brilhante que sofre de uma doença neurodegenerativa rara, onde perde a noção espacial e a visão. A câmera de Mia não desgruda a câmera de Sandra e mais do que seu olhar sobre as coisas, acompanhamos o comportamento dela perante às ag