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VAGA CARNE E SETE ANOS EM MAIO

Os corpos e as vozes - Carta Maior  Dois filmes premiados da nova geração mineira disponíveis via ...
Retratos performáticos acerca dos apagamentos históricos na terra brasilis   

Crítica por Marco Fialho

"...O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;

que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua..."

fragmento do poema "A palo seco" extraído do livro "Quaderna", de João Cabral de Melo Neto 

De qual lugar o cinema historicamente fala? Quais são as vozes que nos chegam e quais imagens elas ratificam ou questionam? São perguntas que muitas vezes não fazemos aos filmes, mas que são fundamentais não só para melhor compreendê-los como também para situá-los eticamente no mundo. É o caso de "Vaga carne", dirigido por Grace Passô e Ricardo Alves Jr. e de "Sete anos em maio" de Affonso Uchôa, que estão sendo lançados on line, juntos, em um tour de force pela distribuidora Embaúba Filmes. Lançá-los em uma única sessão faz sentido por diversas razões: ambos são filmes independentes mineiros de diretores e personas que vem marcando forte presença no recente cinema brasileiro; são médias-metragens (formato não usual em nosso cinema que privilegia os longas), que juntos somam 87 minutos; seus temas também os aproxima vigorosamente, ao perpetrarem vertentes de apagamentos históricos, que mostram o quanto ainda estamos humana e socialmente aquém, o quanto continuamos reafirmando e fomentando a desigualdade entre os corpos brasileiros; são ainda dois gritos vindos das periferias de nossa sociedade, que clamam por serem ouvidos; são manifestos fortemente identitários, com fortes pontos de vista que reforçam a voz dos espoliados; além de trazerem em si propostas narrativas ousadas. "Vaga carne" foi adaptada da bem-sucedida peça teatral de Grace Passô, que teve uma temporada de muito sucesso e "Sete anos em maio" vem reafirmar a força do cinema de Uchôa e sua opção por personagens marginalizados pelos poderosos, que são constantemente socialmente apagados. 

"Vaga carne" é sobre a autoridade da voz, do seu descontentamento perante ao corpo e o fatal deslocamento, ou talvez, mais profundamente, sobre o autorizar/desautorizar de uma voz. Enfim, pode-se dizer que é sobre narrativas, disputas de narrativas e nomeações. Palavras que nomeiam coisas, bichos, pessoas, que dão peso ou leveza, que classificam, indexam, enquadram. Uma voz que se impõe como presença onipresente. Quem sabe se se ouvisse apenas a voz ela se corporificasse, fosse ouvida e transformada em numa imagem. Mas aqui, a ausência do corpo talvez diga mais sobre ele do que qualquer imagem dele. "Vaga carne" incomoda pela materialidade de uma ausência, de um corpo historicamente negado, enfraquecido, que cansou de buscar um consentimento pela sua existência. Cansado de ser margem ele transmuta-se em ausência, mas o seu lastro é tal que por mais apagado que ele seja, resta-lhe a voz fugidia, a presença da voz que corporifica sua fragilidade. Mas essa voz é Grace Passô, uma voz que emana o poder da presença física. O texto é dela própria, a encenação teatral também. Tudo parece indicar que o palco da vida lhe pertence, conquistado como o é em qualquer batalha, na luta e igualmente no grito. Sim, é o corpo preto de que se fala, de uma voz tantas vezes suprimida (aqui não diz a voz que se faz presença). Tudo em "Vaga carne" quer dizer que por mais que insista, esse corpo preto combalido estará ali resistindo, nem que seja por uma voz autônoma a confessar a luta pela vida, com a força da presença. Tudo indica que há uma fissura entre corpo e alma, um desencontro ontológico, uma ruptura inegociável e disruptiva. Uma civilização assentada na necropolítica, que se impõe ao sujeito histórico, o fragmenta e cinge uma ideia de unidade. Por isso, o corpo é o objeto central desse esfacelamento, pois a imagem-presença carrega os estigmas impostos pela sociedade. 

Evidente que não é só uma necessidade de existir. Muitas são as camadas que permeiam esse corpo-voz que ouvimos e vemos, afinal, existe a performance e ela está na voz e na imagem, ela está na atriz-autora Passô, como diz belamente Soraya Martins, na apresentação do livro da peça, "um corpo-voz tecendo uma coreovozpolítica". Há essa instância performática presente na voz e no corpo, na subjetividade de cada plano apresentado. Para muitos cinema é imagem e o som se apresenta como um mero complemento do que vemos, apenas reafirma o que a visão imagina que vê. Sim, cito aqui a ilusão ótica, natureza e artefato número um do próprio cinema: a sucessão dos fotogramas. Mas em "Vaga carne" eles não estão lá para se afirmar como imagem-movimento, como tão bem teoriza Deleuze no provocativo livro "Cinema - imagem-movimento". Aqui, extrai-se a imagem para se potencializar a voz, eis a estratégia dos diretores. Ao mexer na base constitutiva do cinema, "Vaga carne" nos pergunta ferozmente sobre o papel histórico da própria imagem, afinal o racismo se construiu pela rejeição de uma determinada imagem, ao lhe atribuir um espectro de dominação e exclusão. A imagem como discurso excludente foi estratégia por parte dos poderosos, e "Vaga carne", como obra, se faz cônscio do lastro de um apagamento construído historicamente, e ainda pungentemente presente na sociedade. Dominação branca é uma das facetas aqui exploradas, todavia o que dizer sobre o fato desse corpo e voz serem de uma mulher? Essas são camadas que vão se sobrepondo, se imiscuindo e enriquecendo ao se desnudar as narrativas de poder que estão historicamente em jogo. Ser mulher, preta e geograficamente periférica forjam um só conjunto que por fim embasa "Vaga carne".
Espetáculo “Vaga Carne” faz últimas apresentações em Salvador ...
É justamente a vida em um lugar periférica que está no âmago de "Sete anos em maio". O diretor, Affonso Uchôa, vem realizando obra a obra preciosidades que o alça a um dos grandes diretores do cinema brasileiro contemporâneo. E aqui estamos defronte de mais uma e ele não precisa de muito tempo para isso. Em apenas 45 minutos, assistimos a uma síntese potente acerca das vidas marginalizadas que povoam nossa cruel realidade. Vidas invisibilizadas, maltratadas pelo poder público e condenadas ao aniquilamento. 

Entretanto, mesmo reconhecendo a relevância do tema da exclusão social tratada no filme, o grande trunfo da obra está na construção narrativa proposta por Uchôa. O centro da obra, quase metade dela, está assentada em um único depoimento, o de Rafael Rocha, mais um dentre vários personagens da vida periférica brasileira, renegados sociais e à mercê dos maus tratos das autoridades policiais. O depoimento dele dura 17 minutos, onde narra as agruras e sofrimentos de sua vida, se é que podemos chamar de vida o massacre que lhe é impingido. Vemos Rafael fabulando para alguém, embora Uchôa não revele a quem. Ao fim dos 17 minutos o interlocutor é revelado, sendo ele um igual, mais um periférico que vive às margens da sociedade. As falas são contundentes. Em certa hora esse interlocutor diz as seguintes pérolas: "quando os caras te pegaram, quantos vizinhos te acudiram? O mundo não é injusto só por causa da polícia não, mano!". Logo mais à frente continua com suas palavras afiadas: "A gente tá cercado por uma pilha de gente morta, cara! E essa pilha só está crescendo, e é por isso que está tudo tão escuro. Mas não tem noite que dure para sempre não!" Esse discurso é ratificado pela fotografia do filme que sublinha as sombras da noite, de forma tal que mal conseguimos ver os rostos dos personagens. Inclusive, todas as cenas se passam à noite, o que também muito diz sobre a temática da exclusão que move o filme. 

O dispositivo utilizado por Uchôa é perturbador. Os dois depoentes estão ali representando eles mesmos, inclusive Rafael está nos créditos como um dos roteiristas do filme. As falas são verdadeiras. Uchôa trabalha em uma linha tênue fascinante entre a ficção e o documentário, e a permanência do nome real ratifica a tensão do que é dito. Porém, eis que chega a sequência final, em que Uchôa propõe um surpreendente jogo performático. Digo um jogo porque ele é inspirado na famosa e ingênua brincadeira infantil chamada "vivo-morto". Sim, aquela que ao dizer morto agacha-se, e ao se dizer vivo temos que ficar de pé, tendo aqui um policial no controle da brincadeira com vários periféricos, a maioria composta por pretos. É uma performance, mas também uma metáfora da relação entre as forças policiais e os periféricos, já que a escolha do periférico em continuar vivendo está sempre nas mãos de um policial. O que Uchôa aponta é que o jogo precisa de um basta. As vidas dos moradores das periferias importam e a necropolítica precisa ser estancada. Essa é a mensagem de Uchôa. 

Os dois filmes, "Vaga carne" e "Sete anos em maio" são narrativas que interagem fortemente com o presente, mas ambas trazem consigo um espectro histórico a ser ultrapassado e vencido. Ambos se mostram inconformados com os apagamentos sistemáticos à existência das populações periféricas. Enquanto "Vaga carne" assume o apagamento na própria imagem, "Sete anos em maio" estilisticamente nos lembra um rap, com uma fala que oscila entre o discurso direto e simbólico. São obras fundamentais e que nos chegam em um momento crucial do país, onde o desprezo pelos marginalizados assume uma faceta fascista e excludente. Ambos trabalhos são duplamente potentes, de um lado por serem ousadas concepções narrativas, e por outro, por reafirmarem a importância de se reverter uma realidade que impõe apagamentos resultantes de um processo histórico escravocrata que perpetrou e perpetuou desigualdades sociais. Afinal, é bom repetir a sentença já dita acima: "não tem noite que dure para sempre", afinal, é preciso entender de uma vez por todas que vidas negras importam!!  

Cotação: 
Vaga carne 4/5
Sete anos em maio 5/5       

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