Pular para o conteúdo principal

ME CUIDEM-SE - PARTE 4 Direção Bebeto Abrantes e Cavi Borges

Me Cuidem-Se! 4 - Vertentes do Cinema
"O poeta não morre"

Por Marco Fialho

"Os que lavam as mãos, 
o fazem com uma bacia de sangue"
                                                    Bertolt Brecht

Já escrevi nesse blog sobre a parte 1 da série "Me cuidem-se", dedicada aos efeitos do isolamento social na vida de alguns personagens, argutamente escolhidos pelos diretores Bebeto Abrantes e Cavi Borges para relatarem seus sentimentos e vidas nesse doloroso momento. Acabo de assistir a 4ª parte dessa série e me confesso deveras estupefato. Senti um turbilhão de emoções, um misto de tristeza profunda e resignação com uma pontinha de esperança no humano (que nem tudo está perdido ainda). Como estrutura fílmica, me parece que esse episódio é o mais bem acabado da série, onde os personagens mais recorrentes começam a esboçar um maior domínio acerca tanto da narrativa quanto de suas participações e histórias, provavelmente por já estarem mais familiarizados e confortáveis com o ato da autofilmagem. 

Como em todos os outros episódios tenta-se sempre um esgarçamento da esfera do individual, pois apesar dos personagens estarem confinados existe todo um contexto que extrapola o próprio fenômeno sanitário, o de um presidente fascista que insiste em se colocar como inimigo da única ação possível que pode diminuir a curva de propagação do vírus, a do isolamento social. Em nome de uma suposta volta à normalidade econômica, o presidente reitera as ideias genocidas do capital, de pouco se importar com as vidas humanas que estão ameaçadas. 

E nessa estratégia de amarrar o geral e o particular, a Parte 4 do "Me cuidem-se" é a mais bem-sucedida da série. Talvez por ter incorporado, na dimensão macro, duas lamentáveis perdas humanas no mundo artístico que nesse contexto atual do Brasil e da pandemia, descortinam-se igualmente simbólicas. E o que deflagra a potência desse dispositivo da alternância interno/externo nessa Parte 4, de trazer o exógeno para dançar, é a participação do personagem Elbio Ribeiro, e essa invasão no filme vem de dentro para fora, sua enunciação vem numa explosão incontrolável de emoção perante o anúncio da morte do poeta e letrista Aldir Blanc. Esse registro está entre os momentos mais tocantes que assisti recentemente no cinema. Descobre-se assim a possibilidade da explosão do momento, da interação direta de um personagem com o fato, que traz uma verdade do imediato. Nesse caso de Elbio, um grito que vem de um choro contido, uma revolta com um país que não consegue nem respeitar e por consequência socorrer seus ícones artísticos. O que vale ali é a sua reação e o seu sentimento sugado no calor da hora, a vivência interior de um fato exterior. Um encontro do fato com o sujeito e a forma que o primeiro se processa no segundo. É de arrepiar, quando Elbio canta "Linha de passe", da dupla João Bosco/Aldir, como se sua voz apaixonada tivesse o poder de ressuscitar Aldir. A câmera surpreende e capta esse momento de epifania. O sentimento dele se torna o nosso justamente porque provavelmente também passamos pela mesma sensação quando soubemos dessa notícia. "Me cuidem-se Parte 4" instaura nesse instante um profundo sentimento de identificação, tão falado às vezes, mas raro de se conseguir no cinema.  

Outro aspecto desse "Me cuidem-se" que impressiona é a mudança de postura dos próprios personagens. Se nos outros episódios as facetas do cotidiano prevaleciam, agora eles surgem como propulsores de uma narrativa, criam motivações internas, ou externas, como o rapaz que acompanha a evolução do vírus no Morro Santa Marta, ou o caso da dramaturga Regina Miranda que fabula ternamente o quanto as ações da arte afetam positivamente em nossas vidas. O que mais surpreende é como a fisicalidade do mundo se expandiu nesse 4º episódio, ele aparece com uma força irrefreável, talvez porque a parte do mundo que está em nós é tão potente que começa a aflorar. Essa Parte 4 nos espanta favoravelmente ao constatar como somos irrevogavelmente sociais e necessitados de arte (talvez até mais do que imaginávamos). 

Como em todos os outros três episódios, nesse também temos as performances insuperáveis e criativas de Patrícia Niedermeier. É incrível como a sua presença dá o tom de cada episódio. Pode ser que eu esteja imaginando para além da conta, mas vi essa Parte 4 como uma espécie de síntese, a parte mais congruente, em que as diferenças entre os personagens foram menos sentidas, e que as cenas dialogaram impecavelmente entre si. Para alguns, "Me cuidem-se" pode até parecer um simples ato de colagem, um filme de montagem (já que os diretores não estão ali dirigindo durante as filmagens) mas o que se vislumbra para mim é um imenso trabalho de uma insana artesania, onde os diretores estão no meio de um processo que envolve criação de uma ideia deles interagindo com uma realidade em constante transformação de seus personagens, sempre na busca de estabelecer uma linguagem fabuloperformática vinda diretamente do social. Por isso, o corpo e a expressão de Patrícia muito dizem sobre a camada simbólica que essa obra suscita em nós. Ela serve de termômetro dessa série. 

E com certeza Patrícia nos diz algo quando dança freneticamente até o momento que começa a socar com revolta os ladrilhos do banheiro. Para mim, sua personagem representa o impacto do isolamento no nosso estado de espírito, a manifestação do nosso estar psicológico durante a pandemia. Há uma angústia e uma necessidade de extravasar ansiedades, e sim, nosso corpo precisa reagir, afinal agora temos a certeza de que o maior inimigo não é o invisível, mas sim o que está visível, e para se constatar isso basta ligar a televisão. Cada gesto, cada olhar, e agora palavras de Patrícia nesse episódio, estão voltados para a figura abjeta e assassina que ocupa o Palácio do Planalto. Tudo o que ele representa hoje é a antítese do que simboliza a arte e o amor. Nos devemos à poesia, pois ela incomoda e nos faz lembrar que o mundo não pode ser esse jardim de pedra que os fascistas facínoras pretendem implantar. Por isso, cada sílaba contundente escrita por Flavio Migliaccio e ecoada na voz suspirante de Patrícia, dentro desse contexto aterrador e árido, se conforma como um grito contra o despotismo genocida que recai sobre o nosso povo diariamente. Funciona como um elixir para aliviar as dores do mundo e afagar a nossa alma. 

Visto no dia 18/05/2020, no Vimeo

Cotação: 4 e meio/5

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...