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MORTE EM VENEZA (1971) Direção de Luchino Visconti


O encontro de Visconti com Mahler

Por Marco Fialho

As suas mãos onde estão?
Onde está seu carinho?
Onde está você?

Se eu pudesse buscar
Se eu soubesse onde está
Seu amor, você.

Um dia há de chegar
Quando, eu não sei
Você vai procurar
Onde eu estiver
Sem amor, sem você

Letra da canção "Suas mãos", composta por Antonio Maria.

Luchino Visconti amava literatura. Vários de seus filmes foram adaptados de importantes romances. "Morte em Veneza", baseado no romance homônimo de Thomas Mann, foi um deles, e nele, nos deparamos com seu habitual estilo refinado de filmar, só que aqui mais misterioso do que nunca e por demais interiorizado. Sua versão cinematográfica vai para além da mera reconstituição de época e da adaptação descritiva, pois esse é um filme para ser captado pelas bordas, para se apreender os inúmeros sentimentos que o atravessam. Assim como em uma sinfonia, existe algo que está para além das notas, um espírito a ser construído por cada ouvinte e ele pode ser diverso, e por sinal muito diverso para cada um.

Por isso o mestre Visconti optou em transformar o personagem de Mann, originalmente um escritor em um compositor. E o nome Gustav não é gratuito, há sim aí uma referência explícita de Visconti ao compositor Gustav Mahler. Não casualmente é evidente o protagonismo da música de Mahler e a cada nova nota que ouvimos da sua 5ª sinfonia, entramos mais um pouco na alma do personagem Gustav. Gustav é um espelho do outro Gustav, e essa ideia difusa que o envolve, representa tão bem uma ideia de dubiedade que está no cerne desse filme de Visconti.
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Sentimentos contraditórios emanam de cada cena. Enquanto os diálogos pouco revelam, as ações, reações, gestos e olhares de Gustav entoam notas de uma sinfonia viscontiana, para serem decodificadas por nós espectadores. Se existe uma certeza que conseguimos captar, essa é a de que tudo em volta de Gustav parece ruir. Sua vida e história, juntas, vão desabando. As certezas e as concepções arraigadas desfalecem aos nossos olhos. A dubiedade aflora a cada cena e desconcerta tanto as certezas do personagem quanto as nossas. O masculino/o feminino, o belo/o feio, a juventude/a velhice se impõem vertiginosamente, como se em um passe de mágica tudo se encarnasse ao mesmo tempo. E o cenário decrépito de Veneza, que alimenta o velho, a beleza e a perfeição espiritual se coaduna ao tempo fílmico e literário de Visconti/Mann, como síntese de algo que se esvai. Aos nossos olhos de hoje, eivados pela pandemia do Coronavírus, tem um algo a mais de chocante, a epidemia de cólera que se alastra rapidamente por Veneza, causando uma debandada dos turistas. Não é só o mundo de Gustav que se dissolve, mas o mundo como um todo, física e espiritualmente.           

É nesse cenário de enfermidades que Gustav apaixona-se platonicamente pelo jovem Tadzio (Bjorn Andresen), de 14 anos. Essa obsessão corresponde a última obra de Gustav, ou melhor, expõe o idealismo pelo qual dedicou à vida. Tanto no livro de Mann quanto no filme de Visconti, existe um trauma guardado no passado do personagem. No livro é a morte prematura da esposa e no filme a perda inesperada da filha. Visconti a todo tempo joga com essa informação. Tadzio é um ser andrógino, pode representar tanto à imagem da filha perdida quanto revelar uma homossexualidade recalcada (há uma cena em que ele não consegue transar com uma prostituta no passado). De qualquer forma, a fascinação está ali, é explícita, tanto no livro quanto no filme. Há ainda uma adoração de Gustav por valores clássicos, de perfeição das formas, e Tadzio é mostrado por Visconti muitas vezes em silhueta, como se fora uma estátua grega.     
Descubra um Clássico | Morte em Veneza (1971) - Clube da Poltrona
Visconti realiza seu filme visivelmente tomado pelo personagem Gustav. Em "Morte em Veneza" tudo parte dele, tudo é construído em torno dele. Tadzio é mais um elemento para retratar Gustav e melhor compreendê-lo. Enquanto a obsessão de Gustav é Tadzio, a de Visconti é Gustav, ele é fascinado por ele e isso é muito visível. A escolha do ator para ele era um ponto central na sua concepção cinematográfica. A participação de Dirk Bogarde como Gustav é o grande segredo do sucesso da realização do filme. Ele compõe o personagem com muitas camadas, entendendo minuciosamente como ele deveria agir em cada pequeno detalhe da construção dramatúrgica. Em 1971, Dirk já havia trabalhado com excelentes diretores e já era um profissional para lá de tarimbado. Estava exatamente na idade do personagem, 50 anos, e tinha interpretado 10 anos antes um personagem gay em "O passado me condena" (1961), talvez um dos primeiros filmes em Hollywood a discutir abertamente a homossexualidade.

"Morte em Veneza" é uma das obras-primas de Visconti. Uma obra moderna, adaptada de outra igualmente moderna, de um dos escritores mais importantes da literatura do Século XX. Visconti desenha em sua proposta um retrato angustiante, de um homem fraturado pelos valores impostos pela sociedade, que inesperadamente leva uma rasteira de seu inconsciente ao experimentar um sentimento proibido, ao mesmo tempo coerente com os valores clássicos que sempre professou. É um filme que encanta por tudo de impalpável que traz, por tentar construir imagética e sonoramente uma visão imprecisa, interiorizada, conflituada e incompleta do personagem Gustav. Habilmente, Visconti nos coloca em pé de igualdade com Gustav, pois ficamos, como ele, perturbados e desorientados. Por isso, Visconti entrega uma obra profunda em que mobiliza pelo sentimento não pela razão, alçando personagem e público ao mesmo patamar emocional. Saímos de "Morte em Veneza" arrasados e pensativos acerca da vida e seus propósitos. Só uma obra-prima consegue promover um estrago nessa magnitude.

Revisto em DVD, no dia 09/04/2020, durante a quarentena do Coronavírus. 
Cotação: 5/5               

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