
Poetizando o isolamento
Por Marco Fialho
Quem achou que o inquieto Cavi Borges ficaria em casa sossegado, aproveitando para usufruir de um merecido descanso, por conta do isolamento social recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) devido à pandemia do coronavírus, se enganou, e muito. Rapidamente, ele e Bebeto Abrantes se reuniram (cada um em sua casa) para a realização do filme "Me cuidem-se" que reflete o momento insólito e difícil que vivemos como sociedade durante a primeira semana do isolamento social.
Em quase trinta minutos de filme, Cavi e Bebeto retratam a situação de 3 cidades no Rio de Janeiro (São Gonçalo, Nova Iguaçu e Rio de Janeiro) sob o ponto de vista de 8 pessoas. Vemos as ruas, as rotinas, como cada um encara esse isolamento compulsório. Involuntariamente, o filme versa sobre as diferenças impostas ora pelas individualidades ora pela questão social de onde se mora. Por isso, "Me cuidem-se" parte de uma ideia que intercala o social e o indivíduo.
Pelo que nos passa, os enquadramentos do filme são pessoais as escolhas dos planos, se eles serão mais gerais, médios ou mais próximos, já que os diretores não estavam lá para determinar. Curioso como isso acaba revelando muito sobre o entrevistado, suas relações consigo mesmo e com o espaço. O caso que mais me chamou a atenção foi o Luana Pinheiro, de Nova Iguaçu, a aparentemente mais impactada pela situação e que escolhe sempre planos muito próximos para dar seus depoimentos. Ela parece buscar com seu celular a companhia de quem a assistirá no filme, como se fosse um pedido de ajuda. Ao contrário de Élbio Ribeiro, morador de São Gonçalo, que escolhe planos em que filma com uma inquieta câmera na mão, que retrata suas angústias de viver na periferia e muito boa a sua fala sobre uma ideia de liberdade limitada pela grana. Há também o tom confessional-reflexivo do jovem artista Arthur Palhano, sempre em plano médio, que muito diz sobre a sua necessidade e seu esforço de se manter equilibrado para poder pensar na sua contribuição como ser social.
A reinvenção da rotina no confinamento parece ser o grande desafio da humanidade hoje. Todos estão preocupados com essa redefinição e também como buscar nesse momento uma redefinição mesmo dos valores humanos em sociedade. Amplia-se agora o conceito de cuidar. Uma constatação de que, querendo ou não, nossa atitude sempre reflete um cuidar. Todas as nossas ações no mundo (e a casa também é o mundo, apesar de sempre separarmos isso) são voltadas para um cuidar. Por isso podemos também cuidar mal. Toda ação exterior começa numa ação precedente de interiorização, e isso é fundamental para o que vem pela frente. A entrevista de Regina Miranda muito fala disso. Ela simboliza o próprio exercício de autocontemplação. E o seus planos muito dizem sobre isso, ora são mais gerais ora mais próximos. É também um querer encontrar-se, fruto de um ato de voluntarismo.

"Me cuidem-se" tem as cenas gravadas nas ruas de São Gonçalo e nos becos do Morro Santa Marta. O filme mostra uma mudança radical no cotidiano das cidades. Já em outra cena, filmada de uma janela, vemos populares aglomerados conversando e bebendo no mesmo copo. Esse é um retrato ainda do processo de conscientização sobre o fenômeno da pandemia. Por ser a primeira semana há uma dubiedade ainda nas posturas.
Um outro destaque de "Me cuidem-se" é a de mostrar a reação e a consequente preocupação de muitos dos entrevistados em relação ao primeiro pronunciamento oficial do atual presidente em cadeia nacional, onde ele irresponsavelmente combateu o isolamento e classificou canalhamente o vírus de gripezinha e resfriadinho, encorajando criminosamente as pessoas a voltarem às suas rotinas de vida. Essas cenas são cruciais, pois o aspecto indivíduo-sociedade, ou que mostra como somos seres sociais mesmo, são importantes para nos contrapor veementemente ao discurso inconsequente do presidente. Isso mostra também como a política anda junto com nossas vidas, por mais comezinha que às vezes nossa vida possa parecer. Nossa participação social como seres políticos pode fazer sim a diferença no planeta e as nossas ações refletem e reforçam um pensamento mais individualista ou mais coletivo perante o mundo.
Este é um filme-processo, conforme os diretores gostam de definir, mas que fundamentalmente faz o cinema se encontrar com uma aflição mundial e urgente. Um cinema essencialmente de guerrilha, que está presente nas angústias do presente, que abre um canal direto com a vida. Mas esse também é um filme sobre a resistência pela vida. Enfim, um filme-cidadania! Ele nos mostra que é preciso sobreviver tanto no aspecto físico do contágio quanto no plano da saúde mental. Por nossa sobrevivência integral como espécie, corpo e mente precisam mais do que nunca serem um só.
Por isso, a grande joia de "Me cuidem-se" está em entremear os depoimentos com uma performance da atriz Patrícia Niedermeier. Sua participação junta duas sensações básicas. Uma é direta, relacionada com o efeito de sufocamento que o vírus causa nos pacientes, e uma outra indireta, mais psicológica imposta pelo ato em si do confinamento. Pode-se dizer que a arte performática de Patrícia sintetiza esse filme, ao nos trazer o pulsar de nossa respiração, que muito diz sobre esse momento. São em suas aparições que "Me cuidem-se" se poetiza, justamente na hora em que a poesia parece estar mais distante do que nunca de nossas vidas. Só isso já valeria assistir a esse filme... e muito!
Visto na quarentena, no dia 08/04/2020, na plataforma Vimeo.
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