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ERA UMA VEZ NA AMÉRICA (1984) Direção Sergio Leone

Jennifer Connelly | Cinema & Debate
O triste retrato da ilusão humana

Por Marco Fialho

"... As mãos doentes entre os dentes
Entre os dentes de um cão
O corpo fino, cristais
O quarto limpo, metais
Entre os dentes da paixão
Chão, caixão, escada
Apenas um jogo de palavras
Entre tudo e nada
Entre os dentes podres da canção"

Trecho da letra da canção "Vinhos finos...cristais" (1971) de Paulinho da Viola

"Era uma vez na América" pode ser visto como um anti-épico de Leone. Isto porque toda a grandiosidade que vemos em alguns momentos é apenas ilusória. Temporalmente, o filme se estrutura de forma descontínua, Leone foge sistematicamente da espetacularização como estratégia narrativa, embora fiquemos sempre com a impressão que o espetáculo em algum momento eclodirá e nos deixará encantados. Entretanto, a cada nova cena Leone vai caminhando para um indeterminismo e isso por uma razão bem clara, o que ele quer é realizar um tratado filosófico sobre um homem simples de Nova York, e mais especificamente sobre um homem desamparado socialmente, preocupado em arrumar maneiras de sobreviver o mais independente possível de terceiros (em especial empregadores e mafiosos). Um homem que não quer vínculos, a não ser com os amigos. 

"Era uma vez na América" é a obra derradeira de Sergio Leone, um dos grandes cineastas que filmou nos anos 1960 e 1970 os famosos western spaghetti. Nesse último trabalho ele saiu do faroeste e surpreendeu a todos ao buscar uma abordagem mais psicológica, quando todos esperavam, a exemplo dos filmes anteriores, tramas explosivas, repletas de sangue e ação. Frustra todas as expectativas, em especial quem espera assistir a um filme de máfia convencional cheio de reviravoltas e mortes abundantes, tal como "Poderoso Chefão parte I e II", os clássicos incontestáveis de Francis Ford Coppola. Leone foge desse registro e impõe a visão que começa pelo social, a de meninos sem um amparo familiar e atinge um grau impressionante de aprofundamento psicológico dos personagens Noodles e Max. Esse último sempre se projetando no primeiro e o final do filme vem a confirmar isso. Poderia ser mais um filme sobre a Lei Seca norte-americana, afinal é nesse período que os jovens se enriquecem, porém não é. E Leone faz questão que assim não o seja.Leone trabalha constantemente com as expectativas de Noodles (Robert De Niro) em relação à vida e aos que o cercam. O cotidiano das ruas é cruel e aí vem a indagação: se tudo o que vem do social sempre gera violência e desconfiança como sobreviver nele? Confiar nos amigos seria a resposta inicial, mas como levar isso a risca quando os amigos são envolvidos, em seus cotidianos, pela podridão do social? O que Leone faz pensar é que até no cotidiano dos mais simples existem os sonhos... e a ilusão. A fotografia do veterano Tonino Delli Colli ("Era uma vez no Oeste", "A voz da lua", "Decameron" entre muitos outros filmes) cria uma atmosfera lúgubre, com a ausência de cores vivas, com a predominância do ocre, do preto e do cinza, que casa muito bem com a história desses meninos pobres. 

"Era uma vez na América" é um filme sobre algo que está para além do que está sendo retratado nas imagens e diálogos, pois a ilusão sobre o mundo está presente permanentemente nos pensamentos desses homens e não nas ações e falas. Não casualmente, Leone sustenta a história com base nas memórias de Noodles, que se nutre em imagens criadas de seu passado, como a fixação na beleza e pureza de Debora (Jennifer Connely na adolescência e Elizabeth MacGovern na idade adulta). Leone monta a história simbolicamente pelas frestas e buracos, pois elas estão ali a mostrar o quanto a visão de Noodles parte de estreitamentos do olhar e essa é uma das bases do mundo ilusório que construiu para ele mesmo. Até algumas passagens de tempo são realizadas a partir das frestas, como a dele olhando os ensaios de Debora pelo visor do banheiro masculino.  
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"Era uma vez na América" trata das fragilidades na qual somos acometidos em nossas vidas: o quanto nossa memória pode ser enganadora; o atropelo da história sobre nós indivíduos; e a imprevisibilidade do amor. Leone consegue fazer desse aparente filme de gangster um filme intimista e filosófico, e a trilha de Ennio Morricone enfatiza o tempo todo a melancolia da proposta. A relação com o passado e a memória também estão contidos nas canções caprichosamente escolhidas, como as de Irving Berlin, George Gershwin e The Beatles (Yesterday). A impecável interpretação de De Niro vai no ponto nevrálgico do mistério de Noodles, apontando para a sua frieza e desconfiança do mundo. O mergulho que é feito na infância dos personagens está no cerne da obra de Leone. Lembro do quanto se falou da cena de "Cidade de Deus" (2002), de Fernando Meirelles, em que crianças atiravam em outras crianças e isso foi muito criticado por expô-las à violência. Em "Era uma vez na América" o mesmo acontece e com igual realismo. Essa cena tal como foi filmada por Leone era fundamental para o desenvolvimento dos personagens e ainda mais para o protagonista Noodles, por isso a intensidade da sequência é plena. Cometer voluntariamente um assassinato ainda jovem traz manchas no caráter difíceis de retirar. 

Um dos temas centrais de "Era uma vez na América" é o da amizade, como aliás é de praxe nos filmes que envolvem mafiosos. Esse tema é sempre muito árido, pois na máfia as relações profissionais se misturam com as pessoais, o que acarreta muitas cenas de torturas e assassinatos violentos. Mais do que a amizade, o que está em jogo nessas obras é a lealdade. Como manter laços fraternos quando a base de tudo é a grana? Em "Era uma vez na América", o vínculo maior de Noodles é com Max (James Woods estupendo no papel), cuja amizade será sempre ameaçada pelas visões diferentes que ambos tem na condução dos negócios. Inveja, admiração, ciúme e ambição, são alguns elementos que permeiam a conflituosa relação. Noodles verá que com Max também viveu uma ilusão. Max possui uma personalidade ambiciosa e Noodles aos poucos vai enxergando isso. 

Mas a narrativa de "Era uma vez na América" se constrói mesmo é na memória de Noodles. As idas e vindas no tempo caracterizam também sua mente atormentada. A cada nova cena o personagem vai se acabando, se desmoranando na nossa frente, melancolicamente, e a música de Morricone sublinha bem isso. Noodles vem das ruas, sua moral é frágil e o emocional também. A cena em que estupra a mulher que o amava é envolta pela tragédia, e podemos vislumbrar uma pessoa que não foi educada para viver o amor, mas sim a violência. Não à toa a única cena em que sorri abertamente ele está dominado pelo ópio. Leone vai fundo e desnuda Noodles, o pintando como um triste retrato da ilusão humana. Ou seria do próprio sonho americano?

Visto em DVD, durante a quarentena do Coronavírus, em 06/04/2020. 

Cotação: 5/5

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