Pular para o conteúdo principal

1900 - Direção Bernardo Bertolucci

Ornitorrinco Cinéfilo: Novecento
O inventário de uma Itália patriarcal

Por Marco Fialho


"Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande
Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distante
Não esqueça, amigo, eu vou voltar, some longe o trenzinho ao deus-dará
Quando volta já é outro, trouxe até sinhá mocinha pra apresentar
Linda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como lá
Já tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar
E seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha"

                                     Trecho da canção "Morro Velho", de Milton Nascimento (1966) 


Quando se juntam muitos talentos em torno de um projeto como o foi para realizar "1900" cria-se uma imensa expectativa sobre o seu resultado. Imagina reunir em um mesmo filme, o diretor e roteirista Bernardo Bertolucci, o fotógrafo Vittorio Storaro, o maestro Ennio Morricone e os atores Robert De Niro, Gérard Depardieu, Dominique Sanda e Burt Lancaster em uma superprodução com pouco mais de cinco horas de duração. E não bastando, reuní-los em uma proposta ousada de fazer um inventário sócio-político dos cinquenta primeiros anos do Século XX, partindo do retrato de apenas um único personagem de uma família aristocrática e suas relações com seus empregados, em especial com um amigo de infância, filho de um camponês, nascido no mesmo dia que ele. O título "1900" é justamente referência ao ano de nascimento desses dois homens de origens diferentes a crescer em um Itália nova, recém unificada e que em trinta anos viverá duas grandes guerras mundiais. Homens que serão separados essencialmente por suas distintas posições sociais. Bertolucci, em "1900", defende o quanto os seres humanos são profundamente marcados pelas desigualdade sociais, e que, enquanto o amor une, as relações econômicas separam.

O aristocrata nascido em 1900 é Alfredo Berlinghieti (Robert De Niro) e o campesino é Olmo Daco (Gérard Depardieu). O que Bertolucci consegue ao narrar a história é construir essa relação, fazendo ao mesmo tempo uma síntese da Itália do 1900 até o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Expõe no decorrer de suas cinco horas, as nervuras de suas mais complexas contradições. O mérito de Bertolucci é conseguir trazer para o protagonismo, o que seria, na mão de um cineasta mediano, apenas um mero pano de fundo, ao torná-lo relevante e determinante para a vida de seus personagens. Dessa maneira, Bertolucci conseguiu juntar os dramas pessoais com as intensas transformações ocorridas em meio século de história na Itália (1900 até 1950).   
Donald Sutherland in "Novecento" | Filmes
A canção "Morro Velho", de Milton Nascimento, citada na epígrafe desse texto é anterior ao filme de Bertolucci, embora relate com exatidão as relações patriarcais existentes em países que tiveram um desenvolvimento tardio do capitalismo, caso do Brasil e também da Itália, país onde a história de "1900"se passa. Bertolucci acerta ao escolher uma cidade do interior, situada no Norte, para poder trabalhar com esse patriarcado tão arraigado e incrustado nas carnes, nervos e ossos dessa aparente nova Itália, onde as distinções entre as classes sociais eram muito bem delimitadas, e isso aparece vigorosamente em todo o filme. Vemos uma aristocracia rural ainda trazer consigo fortes traços de pessoalidade, de subjugação e hierarquização social. Na trama, os camponeses vivem massacrados pelo vínculo senhorial, tendo sempre que prestar subordinação ao patriarca da hora. Bertolucci ainda retrata uma igreja católica que fica sempre ao lado dos poderosos. Vale lembrar aqui o Tratado de Latrão, assinado em 1920, entre a igreja e o Estado, que cria dentro de Roma o Estado do Vaticano, reivindicação da igreja desde a unificação italiana em 1870. Como "1900" não se passa em Roma, vemos apenas o eco dessas relações macrossociais, como a cena onde o espaço da igreja é utilizado para uma reunião do grupo fascista da cidade.

Foi no interior dessa Itália, carcomida pelas desigualdades sociais e com as elites acuadas pelo crescimento do movimento operário e camponês de matriz marxista, que se germinou a ascensão da ideologia fascista. O mergulho do país no facínora terror fascista no filme é bem representado pelos paramilitares, conhecidos como os camisas negras (milícias fascistas armadas), cujo personagem Átila (Donald Sutherland) tem um maior destaque. Bertolucci retrata tanto Átila quanto sua esposa Regina como pessoas capazes de atos regidos com requintes de crueldade, tal a desumanidade da personalidade deles.
Museu del novecento - Milão nas mãos
Já o personagem Alfredo tem nuances que esboçam um arco bem mais diverso. Por meio dele, Bertolucci passeia por diversos aspectos sociais e históricos importantes e representativos, como a relação da elite com as drogas e com as vanguardas artísticas nos anos 1920 e 1930. Mostra como essa elite transitou por searas várias e com nuances provenientes típicas de uma classe privilegiada. Alfredo vive experiências excêntricas, influenciado por seu tio Ottavio. E é por intermédio do tio que Alfredo conhece a esposa Ada, uma mulher com hábitos burgueses, bem à frente de seu tempo. Aos camponeses só restava a humilhação e a resistência pela luta por direitos e melhores condições de vida. Bertolucci acompanha com interesse a organização política dos camponeses, suas numerosas famílias e as enormes dificuldades para eles terem uma vida digna.

"1900" esbanja uma carpintaria cinematográfica. O cuidado na concepção imagética é exemplar, e o talento de Vittorio Storaro para nos oferecer cenas quentes, que contrabalançam o amarelo e o vermelho com os tons pastéis do figurino são espetaculares, mas no tom certo, sem exageros. Já a música de Morricone transforma em épico cada cena assistida, ora com sensibilidade ora com vigor. Há cenas primorosas em sua execução, com a câmera se movimentando bastante, apesar de sua flagrante delicadeza. Muitas sequências são simbólicas dos momentos históricos retratados, assim como o são cada um dos principais personagens. O avô Alfredo (Burt Lancaster), um arrivista bon vivant, é mostrado como conciliador com os camponeses, e o filho Giovanni, herdeiro da propriedade, o vemos como autoritário e ganancioso. Já neto Alfredo (De Niro), faz o estilo do patrão imaturo, indeciso, despreparado para  a função e perdido perante às transformações em curso. Oscila entre um playboy e um administrador inconstante dos patrimônios adquiridos. Em síntese, o avô de Alfredo representa a Itália que busca conciliar o novo sistema capitalista com as tradições camponesas. O pai é o símbolo do patrão autoritário da Itália protofacista e exploradora dos despossuídos, que não aceita as greves dos camponeses e a reprime com rigor. Alfredo é o patrão fraco, engolido pelo processo devastador do fascismo, mas que sonha ser um sucessor do avô, mas não consegue, pois a história está a atropela-lo.
File:Novecento - Dominique Sanda.jpg - Wikipedia
Bertolucci ao contar essa história se posiciona ao lado dos trabalhadores do campo. Condena a aristocracia arrivista e exploradora e muitas vezes assassina, caso dos fascistas, mostrados como falsos, violentos, egoístas e imorais. O irmão do patriarca Giovanni, Ottávio, é homossexual arrivista e vai morar em Paris, longe da família para viver e pensar livremente, mas usufruindo de seus bens, já que recebe uma mesada bem generosa vinda do testamento do pai. É um aristocrata moderno, que não compactua com os abusos fascistas.

Bernardo Bertolucci realizou "1900", logo após "Último tango em Paris" (1973). Oscilou em sua carreira filmes intimistas fundamentais, como "A estratégia da aranha" (1971), "O conformista"(1971), "La luna" (1979), "O céu que nos protege" (1990), "Beleza roubada" (1996), "O Assédio" (1998) e "Os sonhadores", com mega produções, como "1900", "O último imperador" (1987) e "O pequeno Buda" (1993). Bertolucci é um cineasta da primeira geração pós neorrealista e ainda profundamente marcada pelas temáticas sociais, mas também mergulhada nas angústias estéticas e narrativas das Nouvelle Vague que estavam ocorrendo em diversos países do mundo. "1900" marca mais um encontro de Bertolucci com as temáticas sociais e com o cinema narrativo clássico, apesar de haver ecos das nouvelle vague em alguns momentos do filme.
1900 (Novecento) - Film | Park Circus
A longa sequência do casamento de Alfredo talvez seja a mais simbólica, a mais longa e a mais bem filmada dessa obra, com os personagens se revelando integralmente cena a cena. "1900" é uma obra épica, uma das produções mais completas já realizadas na Itália. Bertolucci imprime aqui a força do cinema narrativo aliado a um cinema repleto de metáforas imagéticas. Ele permite aos atores darem tudo de si, em desempenhos fantásticos e significativos. É a história da Itália passada a limpo como poucas vezes se viu. Um cinema que dialoga frontamente com a História e com o próprio cinema italiano, que iguala o cinema às grandes narrativas literárias, com ampla densidade dramatúrgica e histórica. O inventário de um país recém criado, eivado pelo atraso do patriarcalismo, que emperra e freia as possibilidades de se diminuir as desigualdades sociais. Uma obra-prima com momentos delicados, duros e emotivos, um inventário de uma Itália que se debatia entre a modernidade e o arcaísmo.

Visto em DVD, na quarentena do Coronavírus, em 04/04/2020.
Cotação: 5/5                                         

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ÁLBUM DE FILMES VISTOS EM 2023 - 340 filmes

DESTAQUES FILMES INTERNACIONAIS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-filmes-internacionais-em-2023.html?m=1 DESTAQUES FILMES BRASILEIROS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-de-2023-filmes-brasileiros.html?m=1 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 (cinefialho.blogspot.com) ESPECIAL FIM DE ANO: 14 VÍDEOS DO BATE-PAPO CINEFIALHO DE 2023: O REINO DE DEUS (2023) Dir. Claudia Sainte-Luce Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ GUAPO'Y (2023) Dir. Sofía Paoli Thorne Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ AS GRÁVIDAS (2023) Dir. Pedro Wallace Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ À SOMBRA DA LUZ (2023) Dir. Isabel Reyes Bustos e Ignacia Merino Bustos Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ PONTES NO MAR (2023) Dir. Patricia Ayala Ruiz Vídeo:  Marco Fialho (@ci

GODZILLA - MINUS ONE

Texto de Marco Fialho O maior mérito de "Godzilla - Minus One" está na maneira como o diretor Takeshi Yamazaki conjuga a história narrada com o contexto histórico do Japão pós segunda guerra. O monstro Godzilla é fruto direto do efeito nuclear provocado pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos.  O filme funciona como uma resposta à vergonha japonesa ao difícil processo de reconstrução do país, como algo ainda a ser superado internamente pela população. A partir desse fato, há um hábil manejo no roteiro para que a história funcione a contento, com uma boa fluência narrativa.  Aqui o monstro é revelado desde o início, não havendo nenhuma valorização narrativa, ou mistério, sobre a sua aparição. Mas se repararmos com atenção, "Godzilla - Minus One" é  um filme de monstro, embora se sustente tendo na base um melodrama de dar inveja até aos mais radicais da safra mexicana dos anos 1950. A história parte de Koichi, um piloto kamikaze que se recusa a executar uma or

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras difere