
"É melhor sofrer injustiça do que cometê-la"
Por Marco Fialho
Desde "A árvore da vida" (2011), Terrence Malick devia um filme realmente consistente, à altura do seu talento como diretor. Cineasta que iniciou a carreira na década de 1970 com dois filmes primorosos, "Terra de ninguém" (1973) e "Cinzas do paraíso" (1978), ficou vinte anos inativo até ressurgir com o filosófico filme de guerra "Além da linha vermelha" (1998), que o colocou, com justiça, novamente em evidência. Agora com "Uma vida oculta" (2019), Malick volta ao tema da guerra e nos brinda com um filme melancólico, belo e represado de vida. É um filme de atmosfera, onde suas três horas de duração são propícias para a criação do clima pretendido pelo diretor.
E logo nas primeiras cenas reconhecemos "Uma vida oculta" como uma legítima obra de Malick. Seu estilo inconfundível está presente o tempo todo, mas aqui de maneira mais controlada e objetiva. Não vemos arroubos de imagens belas e gratuitas como em outras de suas obras, que muito dificultavam a nossa conexão com o filme. Aqui, a estética arrojada está bem mais integrada ao desenvolvimento de narrativa. Malick introduz imagens de arquivo de Hitler, de sua assustadora ascensão, sua mise-en-scène espetaculosa, com multidões ensaiadas como se seguissem um tutorial de internet (que na época não existia). Há um trabalho muito bem feito de direção calcado sobretudo ratificação de contrastes tanto na história quanto na concepção da imagem do filme.

Inicialmente, a vida do casal protagonista Franz e Fani situa-se no plano idílico, como se vivessem o paraíso na Terra. Eles vivem numa pequena comunidade rural da Áustria, teoricamente distante dos grandes conflitos mundiais. Mas a ascensão nazista irá desestabilizar a pungente harmonia do casal. Malick estrutura então sua narrativa pela dicotomia entre o céu e o inferno. Não à toa o céu está presente na composição de diversos enquadramentos do filme. O uso da angulação contra-plongée (quando a câmera está situada numa angulação de baixo para cima) favorece essa sensação que salienta o quanto o céu é partícipe da cena e não mero elemento casual dela. Essa situação comunga os personagens com o céu, lhes dá uma dimensão ampliada e amorosa, como se eles flutuassem no mundo. Uma das facetas de extrema beleza de "Uma vida oculta" está nessa suspensão imagética proposta por Malick.
Entretanto o diretor também abusa da câmera sistematicamente se movimentando para frente, invadindo a cena como se quisesse se apropriar dela, numa insinuação essencialmente erótica de penetração e que muito diz sobre a vida do casal antes do pesadelo nazista. E em outros momentos, a câmera flutua vertiginosamente sobre a paisagem. Esses são momentos profundamente sensoriais, de imensa carga poética que Malick nos oferta, fundamentais para demonstrar como que um poder político violento é capaz de obliterar a felicidade humana na Terra.
Malick vai lentamente construindo um clima de tensão, pois a inserção de Franz na guerra é visto como um momento angustiante, já que sua não adesão ao nazismo é explícita e o preço a pagar por isso é imenso. Enquanto toda a comunidade vai aderindo ao novo regime, Franz e sua família vão se isolando. A ideia de paraíso vai a cada cena se esvaindo e sendo apenas uma vaga lembrança imagética. A melancolia e a angústia são terrivelmente implantadas na comunidade, antes serena e solidária. O triunfo do inferno é eminente e "Uma vida oculta" nos faz pensar se essa sombra está assim tão longe de nós, apenas como um fantasma do passado. Um mundo dominado pelo medo não só não permite o estabelecimento da harmonia como também transforma-se em um terrível imperativo contra ela.
A construção do protagonismo de Franz foi alinhavado como um elemento fundamental de resistência. "Uma vida oculta" é baseado em um caso verídico, de um condenado que solitariamente lutou contra as injustiças de um sistema demasiadamente violento, que tem como princípio o aniquilamento de quem se opõe a ele. Malick é explícito quanto ao fato de que a rebeldia de Franz transparecia inócua, pois era solitária, incógnita e ecoada apenas no círculo nazista e que nada mudaria o cenário nacional ou internacional. Mas isso apenas reafirma o quanto a jornada dele é épica, contra um inimigo atroz e insensível. E Malick se utiliza das belas e marcantes composições de Jean Newton Howard para acentuar esse heroísmo de Franz, sem cair ou esbarrar no melodramático, o que é um mérito de sua direção.

Ao final, "Uma vida oculta" configura-se como uma declaração de resistência às ideologias propagadoras de ódio e intolerância. Há uma equação em que quanto mais cresce o medo mais o amor se enfraquece. Com sensibilidade poética à flor da pele, Malick vai deslindando por dentro os mecanismos de dominação nazista, de como este vai transpassando, se espalhando e envenenando as entranhas de uma comunidade. Assim como os seus protagonistas, Malick não se rende à barbárie e escreve uma ode que consegue unir delicadeza, ternura e contundência. Uma obra madura, límpida e necessária.
Visto no Estação Net Rio 4, no dia 07/03/2020.
Cotação: 4/5
Comentários
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!