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LIBERTÉ - Direção de Albert Serra

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Os corpos pela liberdade   

Por Marco Fialho

"Liberté", novo filme do inusitado diretor catalão Albert Serra não é uma obra de fácil acesso. Ela desafia a paciência do espectador com planos lentos, longos e repetitivos. A temática da libertinagem também se constitui em outro elemento de difícil digestão. Cenas de escatologia, sexo bizarro e tantas outras esquisitices inundam a tela, ininterruptamente. As provocações de Serra à contemporaneidade são notórias. O filme se passa antes da revolução francesa, mas o título remete ao seu famoso lema "Liberdade, Igualdade e fraternidade". A liberdade aqui enfatizada é a dos corpos. Liberdade que só é vivida em plenitude na escuridão da noite.
                 
A trama se desenha com nobres franceses, adeptos da filosofia libertina, que depois de expulsos pelo reinado de Luis XVI, almejam  levar para Alemanha polêmicas e audaciosas práticas sexuais. O estranhamento na obra de Albert Serra pode ser visto também em seus trabalhos anteriores. "A morte de Luis XIV" (2018) e "História da minha morte" (2013) já traziam um olhar sobre a vida e a morte, e a desconstrução histórica por meio de personagens que agem de maneira incomum, ou se encontram em alguma situação atípica. Vale lembrar como Serra lentamente vai retirando a aura de Luis XIV, o quanto o status de rei vai se despindo pela chegada da morte e a cada cena vemos um homem vivenciando os últimos suspiros de vida. Um trabalho de humanização de um personagem poucas vezes visto no cinema. Se em "A morte de Luis XIV" ele resgata a figura icônica de Jean-Pierre Leaud (Os incompreendidos, de François Truffaut); em "Liberté", o ator a ser lembrado por Serra é o alemão Helmut Berger (Violência e paixão e Os deuses malditos, ambos filmes de Luchino Visconti). 
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Apesar de "Liberté" ter mais de duas horas de duração, ele se divide em apenas duas sequências, um breve preâmbulo diurno e uma longuíssima sequência libertina, à noite, numa floresta não nomeada, mas localizada em um lugar fronteiriço entre a França e a Alemanha. Aqui, a fronteira é posta como um não-lugar. Como vivemos hoje em uma sociedade onde o conservadorismo está mais do que nunca em voga, o filme de Serra tem tudo para abalar até os mais permissivos dos espectadores atuais. São mais de 200 anos de diferença entre o nosso tempo e o que é mostrado no filme, mas isso salienta o quanto os padrões sexuais se normatizaram de tal forma que o choque moral será inevitável e as manifestações de preconceito também. A intolerância do século XVIII de Serra avança vertiginosamente sobre o século XXI e nos avilta como sociedade. Uma pena, pois "Liberté" faz algo realmente ousado ao não julgar os personagens.   

A noite em "Liberté" se engendra como uma metáfora da interdição, do censurado. Pela madrugada, os seres humanos buscam prazeres e estímulos sexuais em práticas tidas socialmente como perversões. A libertinagem está inserida no conceito moderno do prazer carnal, não espiritualizado, de se contestar até as últimas consequências os valores morais de uma determinada época. Desejos grotescos são despertados e cenas de masoquismo, zoofilia, sadismo, torturas e transas bissexuais se enfileiram a todo momento. A floresta, além espaço de refúgio, também serve para aflorar os instintos mais animalescos dos personagens. Aqui a obra de Albert Serra inusitadamente se encontra com a do brasileiro José Mojica Marins, outro a esgarçar os papéis morais imputados aos corpos. Lembro em especial do último episódio do filme "O estranho mundo de Zé do Caixão", quando ele proclama a vitória do instinto sobre a razão. O filme de Serra se inscreve igualmente nessa lógica onde os desejos mais instintivos movem fortemente os personagens. A floresta funciona como um não-lugar, um espaço em suspensão onde as regras sexuais da sociedade poderiam não ser seguidas e os impulsos prevaleceriam acima das normas restritivas. Evidente que Marques de Sade está espiritualmente presente em "Liberté", em especial as buscas pelo prazer desmedido.
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O conceito pornográfico em "Liberté" está visivelmente subvertido. Não se trata de uma carnalidade consentida e asséptica, mas sim um prazer capturado na dor, na humilhação e no escatológico. O feio, o bonito, o nobre, o plebeu, todos se encontram na floresta e todos são iguais nessa noite, estão no mesmo barco. O título até poderia incorporar a igualdade e a fraternidade, seria justo. O trabalho de atores em "Liberté" é fundamental, pois são eles que estão ali permanentemente expostos fisicamente. Por isso as filmagens foram mais longas do que o habitual. Requer uma cumplicidade com a proposta do diretor e que não é conseguida de um dia para o outro. Nesse caso, de uma noite para a outra.               
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Serra cria uma atmosfera soturna e faz uso muito bem da fotografia para instigar o voyeurismo do espectador, assim como abusa de closes que desglamourizam as partes dos corpos que estão em cena. A sensação é de que embora vejamos tudo nada estamos realmente vendo. O enfoque não é no sexo performático e belo. O estranhamento é que dá o tom às imagens. O som da floresta e dos passos dos personagens direcionam o olhar do espectador. Mas de repente, e curiosamente, também somos observados por meio de um binóculo de um dos personagens. Vemos e somos vistos. Serra nos lembra o quanto o cinema é uma via de mão dupla. Não existe obra sem espectador, e inversamente proporcional, espectador sem obra. E é bom também não esquecer que a noite é algo comum a todos os seres, e todos nós usufruímos de alguma forma dos mistérios dela.

"Liberté" é uma obra para iniciados. Complexa, com uma mise-en-scène rebuscada e imoral para os olhos mais socialmente enquadrados e bem comportados. Ao final, "Liberté" revela-se de difícil assimilação para a maioria do grande público. Mas a arte existe mesmo para esgarçar os limites impostos pelos padrões aceitos socialmente. Albert Serra interroga com corpos e sempre em busca de um prazer desmedido. Claro que isso choca aos nossos olhares aburguesados do Século 21, já domesticados em como se deve praticar o sexo. Mas as imagens propostas por ele clamam por tolerância ao que enquadramos como estranho. O ritmo ralentado e a reiteração dos corpos desviantes podem até soar como excessos que poderiam ser resolvidos pela montagem. Todavia, essa reiteração produz o resultado esperado para fazer a plateia sentir o pretendido asco pelos personagens. Filmar algumas cenas isoladamente não permitiriam ao diretor alcançar os objetivos pretendidos. Há ainda o desejo de Serra em prolongar essa sensação de morosidade do tempo na floresta. Esse tempo precisa estar fora de uma convenção social dos personagens, assim como também em relação à concepção cinematográfica. O uso do tempo em "Liberté" se faz por uma construção politica, como um instrumento das aspirações da própria linguagem explorada pelo diretor.
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Para quem vê as imagens de "Liberté" como  uma aberração, deveria se perguntar antes qual sociedade foi capaz de gerar esses seres tão "abjetos"? Esses seres não estão apartados ou segregados da sociedade e eles talvez até digam mais sobre ela do que qualquer baile da corte do Século XVIII ou festejo sagrado do Século 21. Pelo jeito, os corpos contestavam ontem e ainda continuam assim o fazendo hoje. Os papéis que lhes são socialmente dados parecem nunca saciar inteiramente os desejos mais profundos. A liberdade dos corpos não é perene e a duração dela é a mesma da noite. Por isso, aos primeiros raios de sol a normatização da vida volta a reger esses corpos. Contraditoriamente, a luz traz a hipocrisia enquanto nas profundezas do escuro os corpos se descortinam e são revelados sem máscaras. Albert Serra nos mostra as entranhas da alta sociedade em sua mais profunda intimidade, e bizarrice.

Visto no Estação Net Rio 2, no dia 05/03/2020.
Cotação: 4/5

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