A verdade e suas armadilhas
Por Marco Fialho
Camilo Cavalcante se notabilizou por seus curtas, até que em 2014 realizou seu primeiro longa: A história da eternidade, um filme ficcional que apesar de recente pode ser considerado um novo clássico de nosso cinema. "Beco" é o seu segundo longa e dessa vez sua aposta é em um documentário sobre o Beco dos infernos, no popular bairro de Afogados, em Recife.
Enquanto documentário, "Beco" transita por atalhos interessantes, entre depoimentos e mapeamento visual do ambiente retratado. A cada nova cena somos convidados a adentrar na atmosfera do local, seja pelas imagens reveladoras, seja pela sonoridade que nos envolve, com suas músicas sensuais que nos chegam pelos aparelhos de TV e as inúmeras jukebox espalhadas pelos inúmeros bares do beco. A cada cena, o homem simples e sua maneira própria de se expressar e estar no mundo são desnudados. A câmera mostra rostos em planos próximos, visivelmente talhados pela dificuldade e dureza. Cada sulco desses rostos é esclarecedor e muito dizem sobre as vidas desses homens.
O nome do bairro, Afogados, já aponta para uma pista de que vamos assistir. Conta-se a história que afogados adveio da época em que os escravos tentavam nadar no Rio dos Cedros para tentarem conquistar suas liberdades contra seus senhores opressores. Esse é o passado que esquadrinha cada centímetro desse bairro popular majoritariamente negro. O seu aspecto mercantil e boêmio é composto por mesas e cadeiras de plásticos, dignas dos pés-sujos mais conhecidos Brasil afora. O beco, embora predominantemente negro, não é um lugar de resistência, mas sim um espaço onde pessoas de vida humilde encontram alento e alegria. Rastros da evangelização neopentecostal roça aqui e acolá em algumas falas, seja com respeito seja com desprezo pelo local. Há uma profunda sensação de que esses seres estão profundamente abandonados a sua própria sorte e que o Beco é onde se consegue ter um suspiro de vida.
Inicialmente fica-se uma dúvida de quais caminhos o diretor Camilo Cavalcante quer percorrer. Primeiro nos situa acerca do lugar, parece querer nos dizer algo sobre seus tipos humanos e costumes culturais. Porém, logo parte para ouvir alguns dos frequentadores, sem portanto esboçar que seu objetivo é transformar seu documentário em um filme voltado estritamente para os personagens do local.
Mas no meio do caminho esbarramos no Cícero, um tipo incomum, um fabulador por excelência e que aos poucos vai se revelando muito mais do isso. Cícero é um achado, um personagem que estabelece uma relação diferenciada com o seu entrevistador, parece ciente da importância da narrativa que faz para o filme e vai no cerne da própria natureza do que é um documentário, das consequências e o peso do que é falado em um depoimento. Primeiro ele diz: "a nossa vida é uma vida de representações. A gente nunca é (no sentido aqui de mostrar) o que somos verdadeiramente. Se a gente viver o que a gente é, vivenciar e presenciar o que a gente é, sabe o que vai acontecer? A gente entra em paranoia." O que Cícero nos diz aqui? Que somos invenção e reinvenção? Que somos uma fantasia de nós mesmos?
Entretanto, Cícero não para por aí. Vai além, e muito além. Começa a inventar histórias tristes a respeito de si mesmo, chora, se emociona, diz como perdeu os dentes da frente. Ao final não sabemos qual é sua história. Conta três histórias e diz que são mentirosas, mas depois conta uma supostamente verdadeira. Como acreditar? Cícero põe em xeque o filme, mas não só. De uma vez só desmonta a própria ideia de documentário e assim também desmonta os espectadores. Sintomaticamente ele diz: "Você quer a verdade? Aí é foda...". Orson Welles o adoraria, mas Camilo percebe o trunfo que tem na mão, a preciosidade desse personagem e o aproveita muito bem.
A partir de Cícero, reflexões sobre o que é representação, ou representações, na vida e na arte entram claramente em jogo. O único senão está no que acontece antes de Cícero virar "o protagonista". Fica parecendo que o filme só é "achado" pelo diretor após a chegada dele, e que tudo que veio antes apenas fazia parte de uma pesquisa sobre o tema, na intenção de encontrar algo que desse algum diferencial para a obra. A sensação de que o filme tinha somente um aspecto antropológico se esvai, e a obra dá uma forte guinada para torna-se de uma vez só documentário de personagem e autorreflexivo.
A cena final além de ser marcante, é brilhante, um achado, mesmo que ela acentue ainda mais as discrepâncias dos caminhos escolhidos pelo diretor para contar a história do Beco, pois contempla tanto as vertentes antropológica quanto a autorreflexiva. Na cena vemos em um plano próximo, um personagem sósia do Tim Maia cantando o sucesso "Me dê motivo" solitariamente em um dos bares do Beco. Camilo Cavalcante então vai abrindo o enquadramento até vermos que o som da música de Tim Maia vinha de um programa de televisão com o próprio Tim cantando. Temos então a vida e seu duplo; o cinema e suas verdades; um homem e suas práticas culturais inusitadas. Conhecer os limites do ofício é algo importante para o cineasta. A tal verdade almejada nem sempre estará onde pensamos que ela está.
Visto em link, no dia 09/03/2020.
Cotação: 3 e meio/5
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