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VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI - Direção de Ken Loach



Ken Loach e a "urberização" da sociedade capitalista

Por Marco Fialho

"Você não estava aqui", novo filme do polêmico cineasta britânico Ken Loach, vem de encontro a coerente carreira desse diretor, que sempre optou por retratar majoritariamente dramas políticos ou sociais, alguns até flertando com o cômico como "A parte dos anjos" (2012) e "À procura de Eric" (2009). Mas se existe algo de constante em sua longa filmografia é a sua escolha em retratar histórias sob o ponto de vista da classe trabalhadora, que se afirmam como contínuas denúncias ao capitalismo como sistema político-econômico. Dentro desse princípio pode-se dizer que suas duas últimas obras são as mais radicais.

Loach visivelmente põe hoje seu cinema como um libelo contra as agruras do sistema capitalista e empenha em mostrar como suas políticas estão a pauperizar e amesquinhar a vida dos trabalhadores que vivem nesse regime. O aviltamento e a humilhação tornaram-se os motores de suas obras. Em "Eu, Daniel Blake" (2016), Palma de Ouro em Cannes, o diretor denunciou a burocracia canalha do sistema previdenciário inglês. Agora em "Você não estava aqui" (2019) ele parte para cima da chamada "uberização" da economia capitalista, atacando a atual organização do trabalho capitalista que retira direitos e joga os trabalhadores (aqui se trata de um trabalhador da classe média) em um regime de trabalho exploratório comparável aos primórdios do sistema fabril. A grande metáfora do filme está em uma garrafa pet de refrigerante (invólucro envolto de simbolismo desse capitalismo excessivamente globalizado e incentivador do descartável e do rápido consumo), fundamental para salvar o protagonista em seus apertos fisiológicos.
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Pode-se acusar Loach de ser fatalista, excessivo, dogmático e reducionista ao propor uma análise maniqueísta da história do capitalismo do século 21. Claro que esse maniqueísmo pode ser apontado como um elemento que exposto como evidência não incita o espectador a trabalhar para além do que é retratado. Porém, essa é uma das vertentes possíveis do filme político, a de escancarar tanto os aspectos ideológicos da sociedade como do próprio filme. Se a pauperização é um fato constatável pelo cineasta (que por sua vez também é um ser social), a alternativa que resta a ele é a da denúncia, a de assumir o ponto de vista da classe oprimida ou opressora. O cinema de Loach pode ser visto então como um cinema de ficção a narrar os dramas dos trabalhadores a partir de seus pontos de vista. Se o espectador considera que isso não é apropriado fuja dele, pois assim é o seu posicionamento como diretor em todos os seus filmes, um preceito inegociável e já posto na mesa desde sempre em sua extensa filmografia (iniciada em 1964, portanto há mais de 50 anos).

Dentro dessa ótica exposta, o trabalho de Loach é o de promover uma espécie de diário de seu protagonista, um inventário de sua tentativa de sobreviver em um universo dominado pela adversidade imposta pelo sistema capitalista. "Você não estava aqui" narra, do ponto de vista cinematográfico, a decadência não só de um homem, mas sobretudo a de uma ideia fundadora do próprio capitalismo: a do "self-made man". Claro que o ideário que gestou o capitalismo, não cabe mais no Século 21, é por si, anacrônico. Loach nos mostra como a ideia é imprópria porque ela foi subvertida pelo próprio sistema capitalista, já que existem corporações poderosas e consolidadas a vender a deturpar o princípio fundador. Com tudo dominado, o trabalhador entra não só com sua mão-de-obra, mas também com os meios (seu carro), ficando com as migalhas advindas do sistema. É um trabalhador-atravessador e não um trabalhador da produção, que faz o sistema economizar, pois retira do capitalista a etapa da distribuição da mercadoria, terceirizando esse serviço por meio da ampla reserva de mão-de-obra existente no mercado desigual e cada vez mais concentrado e monopolista.
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Por isso, a câmera de Loach está a acompanhar a dura rotina desse trabalhador-atravessador, seu aviltamento diário, o quanto seu tempo está a serviço de manter a roda do sistema funcionando, enquanto sua vida e as relações com a família vai se deteriorando cena a cena. Loach nos coloca dentro dessa vida que vai sendo rapidamente amesquinhada e para isso basta retratar seguir seu protagonista. Os movimentos próximos e abruptos vem a calhar e cria nos espectadores a mesma sensação incômoda vivida pelo personagem. Há um desequilíbrio nos enquadramentos e na imagem que se coadunam com a proposta de acentuar as angústias do protagonista. O título do filme visivelmente alude ao tempo ausente que o personagem passa longe de sua família, consumido pelo sistema impessoal e cruel. A insensibilidade do sistema contamina o cotidiano do personagem, que vai se apartando de sua família, motivo maior que o levou a aceitar o trabalho acachapante de entregador de mercadorias.

Em paralelo tem ainda a rotina da esposa do nosso protagonista. Com ela, Loach nos propõe um ardil: desempregada, ela vira cuidadora de idosos. Há um evidente sarcasmo do diretor. Ela passa a fazer com os outros o que não consegue mais em casa, o de cuidar do seu lar e de sua família. Escrava desses cuidados, ela passará horas fora de casa, e às vezes até as madrugadas. Assim, os conflitos familiares só se agravam. Marido e esposa não conseguem mais cuidar da família, ambos estão entregues ao sistema, que lhes rouba todo o tempo disponível. Tempo não é mais sinônimo de dinheiro, mas sim de luta pela sobrevivência. Essa é mais uma das denúncias de Loach, o esquema de "uberização" permite tão somente uma sofrível e precária sobrevivência, a qualidade de vida vira um mito inacessível.             
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"Você não estava aqui" é um documento radical e precioso do atual processo de "uberização" da sociedade contemporânea e dá mais um passo de Loach em consolidar os princípios que norteiam o seu cinema: o de denunciar os estratagemas perversos do sistema capitalismo, sua exploração cada vez mais impessoal e cruel de quem precisa trabalhar para sustentar os seus. Esse é mais um filme que Loach trabalha a pauperização dos trabalhadores ingleses, em especial a das camadas médias chafurdadas na crise econômica e no desemprego. A família retratada representa um todo, exemplifica a falência de uma estrutura social, política e econômica que aceitou a mentira e a manipulação como regra. O cair na informalidade vira a saída encontrada para se tentar não perder as conquistas do passado, afinal a Europa sempre teve a mais sólida política de bem-estar social do mundo, que assegurava a manutenção dos direitos fundamentais de cada ente da sociedade (ver sua obra anterior, "Eu, Daniel Blake"). Loach narra a cada filme, a precarização desse processo. É duro, mais importante ao documentar essa tragédia social que vivemos na pele em nossos dias.

Visto em dezembro de 2019, no Festival do Rio.
Cotação: 4/5




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