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VIVER LÁ - Direção de Javiera Véliz Fajardo



A redescoberta do prazer pela observação (Ou um mergulho em um mundo que se esvai)

Por Marco Fialho

"Viver lá" é a estreia muito bem-vinda da chilena Javiera Véliz Fajardo na direção de longas. Praticamente sem diálogos, o filme não tem uma proposta de estabelecer uma narrativa tal como se espera de uma obra convencional. A opção pelo observacional predomina e se justifica inteiramente. Mais do que nos impor uma história, a jovem cineasta nos convida a acompanhar poeticamente a rotina de um homem idoso que vive em pleno deserto do Atacama. As imagens são todas em planos gerais, em nenhum momento conseguimos enxergar o rosto do protagonista, apenas o assistimos em pleno exercício de sua rotina, sempre à distância. Com esse distanciamento na imagem pelos planos gerais, Javiera incorpora o homem à paisagem, onde ele se configura apenas como mais um dos elementos dela.

A grosso modo, podemos dizer que "Viver lá" é um filme para iniciados, para quem procura no cinema uma outra experiência com o tempo e com o fazer cinematográfico. Sua poesia visual deslumbrante nos convida ao mergulho nesse pequeno pedaço de terra que vai se agigantando cena a cena. Talvez possa até se apontar que "Viver lá" seja tão somente uma experiência estética, que apenas quer causar uma sensação de deleite pelo seu primoroso visual, mas felizmente ele é muito mais que isso. Há nele um profundo sentimento de pertencimento e de acolhimento também. Tudo ali nos faz pensar sobre o mundo que construímos para nós, já que cada vez mais nos apartamos da natureza. "Viver lá" é uma aula de amor à vida, que não se encontra mais por aí em uma esquina qualquer. Em um mundo cada vez mais acelerado, essa obra nos chama à atenção para uma outra possibilidade de construção de temporalidade, não à toa Javiera dedica o filme aos seus avós e o personagem central é um senhor que pacientemente toca a sua vida. "Viver lá" não quer explicar o ambiente retratado, prefere criar uma ousada empatia sensorial com o espectador.         
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A relação do homem com a natureza constitui outro viés valioso de "Viver lá". A todo momento somos mediados por elementos naturais. Cada estação do ano está ali contemplada com sua beleza. As cabras, cachorros, urubus, galinhas, oliveiras, árvores, nuvens, chuvas e montanhas estão sempre presentes nas cenas. Javiera aposta sempre nos planos gerais e fixos que nos conclamam à observação e na maioria das vezes pelo simples prazer de admirar imagens inspiradoras de um lugar onde a noção de tempo possui uma lógica diferente da que vivemos nos grandes centros, uma valoração da trivialidade, do cuidar minucioso e atencioso aos detalhes de uma vida comezinha. O desenho de som, de Cristían Freund, pontua com delicadeza e esmero a atmosfera sublime do filme e lentamente vai nos ambientando naquele universo rural pouquíssimo habitado e aparentemente sem vida. O berro marcante das cabras dá o clima da maioria das cenas que gravita sob os nossos sentidos. 

É preciso se despir de muitos condicionamentos para embarcar na viagem proposta por Javiera Véliz Fajardo. Além do condicionamento temporal, já citado anteriormente, é necessário se despir das construções narrativas que impregnam o atual mercado cinematográfico, pois aqui o voo é de outra natureza. O povoado de Totoral, localizado no deserto do Atacama, possui um viver próprio e o grande mérito da direção é o de nos fazer imergir nesse universo único, misterioso e fascinante. "Viver lá" é o cinema com a sua capacidade de nos transportar a um lugarejo que fatalmente jamais conheceríamos, funciona como um poderoso dispositivo de conexão (ou reconexão) nossa com um mundo que já nos é desconhecido. Recentemente assistimos ao filme franco-iraquiano "Yara", do diretor Abbas Fahdel, que nos causava uma sensação semelhante, ao nos mergulhar em uma pequena comunidade localizada nas incomuns e sinuosas montanhas do Vale do Qadisha, no Líbano. Ou um pouco mais distante o cinema formalista e metafísico do mexicano Carlos Reygadas, em especial os lampejos de espiritualidade que emana dos seus planos. Isso porque há da parte de Javiera um visível e profundo respeito ao que está sendo filmado, um quê de reverência imagética ao universo retratado e uma inspiração provocada por esse afeto da diretora. 
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Javiera, além de diretora, assina também a fotografia, a câmera e a montagem e por isso realiza uma obra profundamente pessoal, sem concessões às narrativas vigentes no mercado cinematográfico. A autoralidade é sentida desde as primeiras cenas e sua síntese está exposta em um belo poema que se incrusta na tela logo no início da obra:
"Viver ali não é o inferno/ é o fogo do deserto/ a plenitude da vida/ que ficou aí/ como uma árvore." Há uma sintonia suscitada dessas palavras poéticas que enlaçam a tecitura fílmica. Anotei esse poema e fiquei o ruminando, pois talvez como um animal que também o sou pudesse compreender mais amplamente os significados mais recônditos que habitam nesses versos. A palavra "fogo" nesse poema foi a que mais me intrigou, justamente porque ela sinaliza uma energia que não está exposta na literalidade, mas sim na alma dos personagens e no próprio filme, uma chama que habita na simplicidade cotidiana. E claro, friso ainda a palavra "plenitude", pois afinal é a isso que "Viver lá" mais nos remete. E por último ressalto a palavra "árvore", que ao meu ver sintetiza algo de significante nesta obra, sua capacidade de duração, de perpetuação pela resistência ao tempo, pela sua simbologia ancestral e geracional, além de ser ela em si um símbolo vital para o planeta.

"Viver lá" nos encanta ainda pela potente articulação de suas diversas camadas. Aqui, a natureza está no protagonismo. O vento movimentando as nuvens muito diz sobre uma aparente imobilidade na vida desse vilarejo. Os detalhes contam e a observação fina também. Nunca vemos o rosto do personagem do idoso. Também não o vemos na intimidade do lar, vemos a casa apenas por fora e de longe, nunca por dentro e tudo isso é muito significativo. Assim, Javiera equipara paisagem natural, humanos e bichos. Todos estão no mesmo patamar de importância e estão interligados pela teia da vida e da sobrevivência. E a diretora vai além ao incluir nesse mosaico de elementos também o céu. Em várias cenas ele aparece como partícipe desse espaço, o que me remeteu aos filmes do igualmente chileno Patricio Guzmán, que sempre relaciona o céu e o cosmo em suas narrativas inusitadas. Esse fenômeno de olhar para o céu pode até soar como bobo, entretanto não podemos nos enganar assim facilmente. Ao registrar o céu, a diretora acrescenta à sua narrativa uma parte do ambiente que é fundamental para quem vive nessa localidade inóspita. O céu a constitui tanto como a luz emanada dos postes de rua dos grandes centros. De certa forma, a eletricidade criou uma delimitação espacial nas cidades, já que perdeu-se a possibilidade de se olhar plenamente para o céu, pelo menos sem barreiras (hoje, a luz elétrica oblitera boa parte da nossa visão do céu). Vivemos emoldurados pela luz artificial e chegamos até a esquecer da beleza que é olhar para um céu estrelado.   

Mas para encerrar minha análise desse cativante "Viver lá" gostaria de comentar as fusões de imagens que ocorrem entre algumas cenas, pois para mim elas possuem duas facetas primordiais. Uma delas a de lembrar ao público que se está vendo um filme, pois as fusões são tão ralentadas que lembramos que só o artifício da montagem permite vermos essas transições e essas misturas imagéticas. Todavia, resta um outro aspecto nessas fusões, que chamaremos aqui de imagens sobrepostas, ou imagens abstratas. Esse abstracionismo cinematográfico permite uma experiência à parte na fruição do filme. É como se das duas imagens imiscuídas derivasse uma terceira, tão bela quanto as duas que foram fundidas. Esse é mais um convite à observação que Javiera Véliz Fajardo nos oferta, mas só que dessa vez não como um atributo da beleza do espaço ou do enquadramento, mas sim como um predicado cinematográfico. Sim, a beleza de "Viver lá" transborda por todos os cantos possíveis, como se assistíssemos a uma avalanche em câmera lentíssima. Genericamente, se configura como uma ode à contemplação, uma espécie de elevação espiritual, que em um ensejo único consegue aproximar natureza e estética. Uma redescoberta do prazer por uma genuína ideia de observação. Parece simples, mas não é.     
                                                                                    
Cotação: 5/5

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