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O GABINETE DO DR. CALIGARI (1919) - Direção de Robert Wiene

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Caligari: o terror cinematográfico como prenúncio do terror social

Por Marco Fialho

* Escrito para o catálogo da Mostra "Sombras que assombram", em homenagem ao cinema expressionista alemão 

Analisado em uma perspectiva histórica, o filme O gabinete do Dr. Caligari, dirigido por Robert Wiene, em 1919, é um dos mais significativos não só no campo do cinema como no da cultura. Hoje sem dúvida trata-se de uma referência estética para vários artistas das mais variadas linguagens.

Antes de tudo, Caligari é fundador, considerado um marco do expressionismo no cinema, criador de um estilo calcado sobretudo no poder imagético, mas não só. Sua força também impregna tematicamente, abre uma janela sem igual para a aventura do fantástico no cinema. Enfim, depois de Caligari, o cinema nunca mais foi o mesmo.

De um ponto de vista mais abrangente, Caligari representa o próprio cinema, seja pelo uso da hipnose, seja por assumir uma artificialidade por meio de cenários falsos que denunciam a “mágica” cinematográfica e os truques ilusionistas.

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Devido abarcar essas concepções, o filme sublima-se, de Caligari nasce o caligarismo, o estilo visual que expõe ao mundo distorções advindo de um extravasamento emocional. Como bem define Massaud Moisés, o expressionismo filosoficamente “propõe colocar de novo o homem no centro do mundo, não o indivíduo em particular, mas o Homem como espécie.” (1)
A capacidade de abordar a natureza humana traduz o alcance de Caligari como obra universal para além de sua época. Mesmo passados quase cem anos Caligari continua inspirando as gerações. E pensar que quando realizada o cinema não tinha sequer vinte e cinco anos de existência.

Surpreendentemente, apesar da exuberância de Caligari e a influência inconteste, que paira para além dos anos 20, até hoje Robert Wiene é questionado como realmente criador da obra. Muitos boatos foram criados em torno de Caligari, inclusive que a estética expressionista dos cenários não foi pensada por ele. Um dos roteiristas chegou a se pronunciar como o autor responsável pela concepção imagética do filme. Mas depois, quando ocorreu o acesso ao roteiro comprovou-se que não havia indicações quanto a como seriam os cenários.

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O filme encaixa-se no contexto histórico conturbado da Alemanha do pós-guerra, o da República de Weimar, mas está imerso também em um passado mais distante ao resgatar a melancolia gótica e o Romantismo de outros séculos. Caligari evoca o irracionalismo, uma crítica ao método cientificista e anuncia como uma sombra, um porvir de pesadelo a entrevar e entravar o espírito alemão.
           
O enredo de O gabinete do Dr. Caligari fascina por trazer elementos fantásticos. O filme inicia com a narração de um jovem sobre um estranho acontecimento ocorrido em sua pequena cidade natal envolvendo um médico (Caligari) que manipula as ações de um sonâmbulo (Cesare).

O jovem conta que Caligari se inspira em uma narrativa sueca onde um homem chamado de Caligari domina a mente de um sonâmbulo, no caso Cesare. O médico que trabalhava em um manicômio fica transtornado quando surge um sonâmbulo como paciente e resolve dar vazão ao furor cientificista dele, testando se um sonâmbulo pode realmente ser manipulado a ponto de cometer atos atrozes, inclusive assassinato, tal como lera na história sueca.

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O médico e o sonâmbulo se instalam em uma feira de atrações na pequena cidade alemã e instauram o pânico entre os habitantes. Depois de alguns assassinatos chega-se a conclusão de que Cesare matava e aterrorizava, mas era regido pela mente do médico Caligari. Wiene surpreende no final pela informação de que o jovem narrador sofre de distúrbios mentais e que o tal Caligari da história é o médico do hospício.

Algumas questões interessantes podem ser assinaladas e comentadas a partir desse breve resumo da história de Caligari.
1 – Os cenários artificiais expressionistas só não aparecem quando o jovem aparece narrando a história. A paisagem que assistimos ao fundo é a de um quintal arborizado do manicômio, um ambiente com predomínio da natureza. Esse detalhe é pouco comentado na historiografia dedicada ao expressionismo, pois o mundo distorcido que vemos em todo o filme é tal e qual o vê o narrador esquizofrênico. Assim Wiene nos coloca à mercê durante toda a projeção, dessa subjetividade específica, a do louco, como se estivesse nos condenando a essa visão de mundo.

2 – Ao final o filme sugere a princípio duas perguntas básicas: será que apenas a mente embaçada de um louco é capaz traduzir nossa existência nesse mundo terrível que vivemos? Seremos sistematicamente condenados à manipulação superior, e que pouco seríamos, nada além de sonâmbulos a vagar, longe de sermos indivíduos autônomos?

3 – Será que o jovem encontra-se enclausurado no manicômio por saber a verdade sobre o passado escabroso do médico Caligari, que assim controla seus passos enquanto vive incólume apesar dos crimes passados? Essa versão traz elementos sinistros na mensagem do filme por pressupor que o mundo é controlado por loucos algozes enquanto os sãos e honestos estariam presos por saberem a verdade acerca dos criminosos.

4 – Deve-se considerar a complexidade narrativa do filme, repleta de minúcias e referências literárias, de imbricações, de uma história dentro de uma história e que por sua vez é sustentada por outra história situada na época medieval e em outro país. São tempos diversos que se interpenetram, se confundem e assinalam ao espectador a riqueza que pode conter uma história e que por trás de um mero acontecimento residem, ou pode residir, uma multiplicidade temporal e espacial. Caligari nos desperta para o quão difícil é elaborar uma análise sobre o mundo e seus fenômenos de uma maneira geral.

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A criação de um mundo fantasmagórico e artificial, com cenários pintados e acachapantes com predomínio de ambientes repletos de sombras, escadas e pontes somados com as maquiagens exageradas, atuações insinuantes dos atores, em especial de Conrad Veidt no papel de Cesare, fazem do filme uma angustiante visão da República de Weimar. 

O sucesso do filme se espalhou de forma incontrolável pelo mundo até os nossos dias. A metáfora de uma sociedade produtora de sonâmbulos permanece viva, a crítica sobre a relação entre autoridade e loucura também. O personagem de Cesare ainda hoje cria algum assombro, sua existência, mesmo quando sabemos que se trata de uma figura pertencente ao universo fantástico, é uma sombra a lembrar de que algo está deslocado.

É fascinante e marcante a cena em que Cesare corre esgueirando-se pelas paredes dos cenários como um autêntico sonâmbulo estabanado. E não poderia Wiene filmar essa cena de outra forma, e por uma razão só: uma sombra jamais poderia gerar outra. Não é à toa que os ambientes de sombras anunciam o terror, e o terror é o que não faltava na República de Weimar.
(1) MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo. Cultrix. 2004. p. 181.
Texto escrito em 2013 para a mostra "Sombras que assombram", dedicada ao expressionismo alemão no cinema.

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