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INAUDITO - Direção de Gregorio Gananian

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Documentando o invisível

"A loucura pode ser um estado de transcendência que a pessoa atinge"

                                                Lanny Gordin

Por Marco Fialho

Como documentar o inaudito? Como retratar um tema onde reina sempre algo de impalpável e indecifrável, o som do invisível?  Esse é o desafio do diretor Gregorio Gananian ao mergulhar no atual fluxo de criação do insólito guitarrista Lanny Gordin (já nomeado uma espécie de Hendrix brasileiro), que entre os anos de 1969/1972 viveu um curto período de reconhecimento artístico, quando tocou em discos célebres de Caetano, Gal, Gil e Macalé, com o som destorcido de sua indelével guitarra. Se por um lado o protagonista possui um grande lastro de beleza, e por outro, aponta para algo de inalcançável e não se configura como um ser convencional, o melhor a fazer é permitir que o estranhamento seja assumido no próprio corpo narrativo do processo fílmico. Para a nossa sorte, o filme não cai em uma abordagem historicista de Gordin, inclusive o seu passado musical aparece muito perifericamente e em pouquíssimos momentos. O que importa em "Inaudito" é o hoje do personagem, desvendar na medida do possível o seu processo criativo, tendo a consciência que a incerteza é regra e a abordagem navega no fugidio e no além.

Tudo no filme tende para tornar fluido o fluxo de pensamento de Lanny Gordin, nos dando a sensação de que o personagem vive imerso em sua própria temporalidade. Por isso, um dos elementos basilares de "Inaudito" é o da fabulação. Gordin fala muito, se repete às vezes, mas sempre deixa escapar no final de seu pensamento um riso sarcástico, como se ele mesmo duvidasse do que diz, nos deixando sempre com uma desconfiança acerca de seu discurso, que por vezes beira a inocência de uma criança. Em algumas cenas Lanny aparece refletido na água e o balançar da imagem cria uma distorção, que muito lembra a sua relação de outrora com a guitarra. Mas há nesse balançar uma atualização, pois o mistério da serenidade prevalece sobre a ação. Os pensamentos de Gordin são incomuns, seus gestos, voz e olhar também. Os reflexos e as inversões na imagem acentuam em alguns momentos o estranhamento causado pelo personagem e nos ajudam a lembrar que o filme está buscando caminhos fora do convencional, afinal não tem como construir um documentário clássico quando o personagem é Lanny Gordin.

O filme tem passagens na China e no Brasil, mas não há uma cronologia entre esses dois espaços, o roteiro vagueia e transita livremente por esses dois países. Essa liberdade inspira no espectador uma sensação de mansidão, pois só o que importa é seguir o fluxo de pensamento de Lanny Gordin, assim como se segue um rio em seu curso (não casualmente encontramos tantas vezes o rio nesse filme). A montagem em "Inaudito" é livre, mosaica, expansiva e fluente, busca trabalhar em sintonia com o pensamento divinal de Lanny. A mesma liberdade que também está na atual música de Gordin, definida por ele mesmo como free total. Há um lastro metafísico constante no discurso de Gordin e que é permanentemente reiterado pelo desenho de som de Dino Vicente, que entoa sempre um algo de etéreo e misterioso na trilha. Mas também há lampejos de uma materialidade radical. Não esqueço a cena em que Lanny vai até a cidade de Cubatão e fica repetindo, como um mantra, de frente para uma daquelas soturnas indústrias lançando fumaça para o planeta: "não podemos esquecer que Cubatão existe". 
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Lentamente somos convidados pelo filme a adentrar na vastidão e riqueza que é o mundo mental de Gordin. A fixação no presente do compositor e instrumentista é uma escolha fantástica, pois mais do que ressaltar quem foi Lanny é preciso dizer quem ele é, o quanto potente é sua música e o quanto seu processo de criação tem de filosófico, que traz consigo concepções preciosas de Gordin sobre a vida. Esse emaranhado entre visão de mundo e música é um grande achado do roteiro de Gregorio Gananian e Danielly O. M. M.. Há uma atmosfera que transita entre a imanência e o etéreo, presente também na concepção imagética e sonora do filme: o som como espírito e imagem como corpo.

"Inaudito" felizmente não busca depoimentos que ratifiquem o valor musical de Lanny. Há dois convidados que antes de falar de Lanny propõem uma performance. São eles Macalé e o artista visual José Roberto Aguilar. Queria me deter à performance de Aguilar. Sua enigmática pintura, onde ele vai sobrepondo tinta branca em uma tela também branca, enquanto sintetiza brilhantemente o pensamento de Lanny. Reproduzo aqui integralmente essa fala filosófica do artista:

"Esse é o som do invisível, quando Lanny está preparando a tempestade que vem depois da calmaria. É importante uma expectativa totalmente silenciosa. O invisível é que prepara o visível. O branco sobre o branco é a corda na qual o Lanny Gordin vai tocar. O invisível é a felicidade, o invisível é a saúde. O visível é a doença.  O visível é a angústia. O branco sobre o branco não tem interpretação nenhuma, ele apenas é. Aqui está a alma do Lanny Gordin. Pura. Total."

Entretanto, pensar a arte em um sentido transcendente só é possível quando o fazemos fora da caixa das relações mercantis. O roteiro trabalha isso de uma maneira muito sutil e bela. E tudo começa a ficar mais evidente na cena do grande aquário chinês que Lanny vai visitar. Gananian é muito perspicaz ao filmá-la e editá-la. Filma tudo com uma plasticidade exemplar, com imagens quase sobrenaturais de medusas e águas-vivas. Lanny reconhece a beleza do invólucro, mas pontua o fato de que uma água-viva só é livre no oceano. Em outra cena no aquário, os pais tiram fotos de seus filhos junto a esculturas de uma família de pinguim. Um encontro de "famílias" (uma natural e a outra não) que sela o artificialismo das relações contemporâneas com a natureza, o espetáculo como meio, o comércio como fim. A simples passagem da figura de Lanny por essa família ali fotografando, registrando o encontro de seus filhos com falsos pinguins, muito diz sobre a mercantilização do mundo e da vida atual, seja na música, seja fora dela. Lanny nos vislumbra aqui como sua mera presença contradiz a noção de espetáculo. A sua relação com o sagrado na música é o que realmente tangencia hoje a vida de Gordin. Para Gordin, e para o filme, a transcendência se instaura fora desse universo, assentado tão somente na dinâmica do mundo material. O esforço de Lanny é de se transformar na própria música, algo que para ele se constitui como campo apenas do divino.         

Infinito, além, eternidade são as palavras que vão dando corpo ao universo de Lanny e ao próprio filme. Existe sempre algo de imaterial, algo que está em outro plano da imagem e do som, mas que eles precisam indicar ao invés de materializar. Esse é um desafio, mesmo. Atingir ao pensamento de Lanny é muito complexo, porque existe algo que transcende e Gananian permite que esses vazios e essas indeterminações existam no filme. "Inaudito" não é um filme para explicar Lanny, mas sim para explorá-lo e a exploração é sempre algo inconclusa e ilimitada. Daí a fabulação de Lanny fazer tanto sentido, ela é um fio que está infinitamente se desenrolando, a imaterializar  a sua imaginação metafísica. Talvez "Inaudito" seja isso mesmo, um fantástico filme-exploração. Um filme cônscio que está a buscar o inatingível.

Cotação: 4 e meio/5

Comentários

  1. maravilha de texto que busca dizer o indizível. como contornar isso com palavras?

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