
Entre a alegoria circense do mundo e a antifábula de si mesmo
Por Marco Fialho
Comecemos a analisar Oito e Meio (1963) pelo título, que revela algo importante tanto sobre a obra quanto o seu diretor, Federico Fellini. O título Oito e meio faz referência aos seis longas dirigidos somente por ele (Abismo de um Sonho {1952}, Os Boas-Vidas {1953}, A Estrada da Vida {1954}, A Trapaça {1955}, Noites de Cabíria {1957}e A Doce Vida {1960}), mais duas participações como diretor em filmes organizados por episódios (Uma Agência Matrimonial {Segmento de Amore in Cittá, 1953} e Tentações do Doutor Antonio {Segmento de Boccaccio '70, 1962}), e ainda a seu primeiro longa Mulheres em Luzes (1950), no qual dividiu a direção com Alberto Lattuada. Mais autorreferente do que isso, impossível. Fora o fato do protagonista Guido (Marcello Mastroianni) ser um cineasta que está dirigindo um filme e ter a mesma idade de Fellini à época, 43 anos. Guido tem uma esposa, assim como Fellini também o tinha, e uma amante, vivida pela atriz Sandra Milo, que foi amante do diretor por 17 anos fora das telas, segundo reiteradas declarações da própria atriz.
O ponto de partida de Oito e Meio é a crise de criatividade de Guido e a expectativa em torno de seu próximo filme. O que Fellini nos oferece a partir daí é um mosaico de imagens que perpassam as angústias, os sonhos e delírios de Guido, o alter ego de Fellini. Não casualmente, o filme começa com um pesadelo sufocante de Guido, que termina com ele voando, um tour de force, como que inconscientemente desejasse sumir do mundo. É nessa obra que Fellini consolida o adjetivo que o acompanharia por toda a sua vida: felliniano, e se afastaria da influência neorrealista do início da carreira, ao mesmo tempo que aprofundaria a estética ousada e descontínua iniciada em A Doce Vida. Oito e Meio concentra uma contundente crítica ao pensamento racionalista, acentua o gosto de Fellini pelo individualismo e o distancia dos discursos políticos em voga no pós-guerra, mais voltados para a transformação coletiva da sociedade, o que fez com que ele fosse muito criticado por algumas vertentes da esquerda mundial.
Em Oito e Meio, Fellini implode com a narrativa linear e realista ao não distinguir sonho e realidade. Não há um encadeamento entre as cenas, efetivamente predomina uma mise-en-scène complexa, onde a câmera estabelece um bailado poético que envolve uma movimentação constante dos personagens em um jogo entre o primeiro e o segundo plano da imagem. A sensação ofertada aos espectadores é o de vertigem, tem-se a mesma sensação de instabilidade tão comum nos devaneios dos sonhos, como se estivéssemos a pisar em nuvens, a flutuar e vagar aleatoriamente pelo mundo. Fellini tenta nos inserir, fisicamente, no mundo do inconsciente, mergulhando em narrativas fragmentadas, conectadas apenas no fluxo ditado pelo transe de Guido, um artista em franca crise existencial.
Mais do que discutir um conceito artístico em si, Fellini prefere pôr em suspensão a posição do artista em uma sociedade imersa no consumo, em que o seu papel está posto para além do processo artístico, mais implicado na construção de uma imagem, de uma projeção artificial do sujeito criador do que para a própria criação da obra, desenhando assim um mundo esfumado, escapista e ilusório, prestes a se desmanchar no ar ao primeiro vento. Há uma visível fragilidade nessa personalidade que o sistema precisa fabricar como indelével e firme. A relação de Guido com a memória torna-se o maior adversário a ser encarado. Quem seria esse sujeito para si mesmo e qual seria a sua essência, seria ele um embuste? A fama cega o artista, que passa a viver a partir de uma autoimagem na qual sequer sabe como ela foi criada. Perde-se o domínio de si, pois o próprio não é capaz de se reconhecer sequer no espelho.
Por essa tendência enviezada é que refletimos sobre a fotografia de Gianni Di Venanzo, um dos pontos altos do filme, com um aproveitamento sintomático das sombras, bem ao estilo perturbador da estética expressionista. Pelas sombras, se forja uma atmosfera de mistério constantemente presente em Oito e Meio, por ela se articula o inconsciente de Guido, seus medos, aflições e perturbações. Guido vive em tormento consigo mesmo e com a pressão que se coloca em torno do "inevitável" próximo sucesso, dado como certo pela engrenagem que depende dele para continuar fazendo a roda girar. É o artista preso na própria vaidade, e que sem perceber, virou ele mesmo uma mercadoria a ser vendida pelo abastado mercado da arte. Fellini expõe as entranhas desse artista massacrado pelo ego e pela autocobrança que escamoteia a necessidade do lucro que justifica para os mecenas os altos investimentos da arte. A preservação da imagem se torna fundamental, embora gere em Guido incômodos e inseguranças sem fim.
Por isso, a ideia de direção de arte em Oito e Meio é fundamental, por salientar as contradições não só do protagonista, mas também da própria sociedade, que anseia por destacar os gênios artistas e o quanto eles e o mundo que os cerca possuem atributos importantes para todo o corpo social. O diretor de arte Piero Gherardi se esmera em especial nos figurinos, a destacar o alcance visual no quesito chapelaria que é algo à parte. Mas as roupas como um todo são primorosas, em especial as de Carla Albanesi (Sandra Milo), amante de Guido, e as da esposa, Luisa (Anouk Aimée). Enquanto Luisa primava por um guarda-roupa elegante e sóbrio, o de Carla se impunha pelo extravagante, ao usar penugem e outros ornamentos, inclusive uma maquiagem para lá de excessiva. Tem uma história que ocorre após o filme, que é muito esclarecedora. Diante do sucesso e excelência dos figurinos de Oito e Meio, um fabricante norte-americano quis replicar alguns modelos de chapéus, como por exemplo, o usado por Guido no filme. Esse tipo de correlação artística eleva o filme não apenas a um produto em si, mas também para ser vendido a partir do que ele oferece como mercadoria para indústria da moda, como imagem. Algo endógeno se transforma em exógeno, em produto vendável para aferir ganhos financeiros, um aspecto cruel da relação arte e consumo na contemporaneidade, e olha que estamos aqui discutindo um filme de 1963. Essa é a mesma estratégia que vemos hoje multiplicada em níveis estratosféricos nas ações de marketing das mais lucrativas empresas do cinema pós-industrial, tanto da Disney quanto das suas maiores concorrentes.
A vida diária de um diretor de cinema de sucesso é cercada pela badalação e abordagens insistentes. Fellini sabe como pontuar as dificuldades sistemáticas, como a conturbada relação com o racionalismo exacerbado da crítica, a falsa compreensão do produtor, o nervosismo dos atores que querem a todo o instante arrancar dele perfis mais detalhados dos personagens. O caos insuportável do presente fustiga Guido a emergir em paisagens atemporais do inconsciente, da memória e do sonho, elementos inteiramente tomados pelo irracional, receptáculos portentosos com poderes de amparar ideias libertárias. Guido anseia por libertação. Por isso em Oito e Meio a temporalidade ameaça sistematicamente evaporar-se, deve-se pensar aqui em uma espécie de tempo etéreo do inconsciente.
Há ainda em Oito e Meio uma significativa relação de Guido com as mulheres, sempre mediada contraditoriamente pela facilidade da fama e os momentos de impertinência. Enquanto ele sonha com uma mulher aparentemente ideal e angelical (interpretada por Claudia Cardinale no auge de sua beleza e juventude), ele tem visões e sonhos com a mãe e com o pai. Em uma determinada cena, Guido imagina que está em um harém, rodeado por diversas mulheres com as quais transou e flertou durante a vida. Em outra, está em um cemitério a dialogar com os pais e a esposa Luisa.
Se as regressões à infância podem ser consideradas como uma das mais significativas marcas fellinianas, em Oito e Meio ela aparece com força total. São diversas as cenas onde a memória infantil é evocada. Nelas, Fellini aproveita para despejar uma ostensiva veia anticlerical, ao lembrar dos abusos impostos pelos padres no período escolar. Impossível não lembrar aqui do cineasta sueco Ingmar Bergman, seu contemporâneo. Ambos gostavam de trabalhar com alguns tema sem comum, como as lembranças da infância, a repressão cristã (incluindo os castigos humilhantes), a falsidade e a hipocrisia dos confessionários, lembrando ainda dos sonhos como elementos perenes de perturbação psíquica. Quando Guido encontra o monsenhor, ele busca uma palavra de alento, mas o que encontra são sentenças duras de ouvir: "quem disse que viemos ao mundo para ser feliz" e "fora da igreja não há salvação". Fellini revelava-se antes de tudo um antidogmático ao rechaçar qualquer tipo de doutrinação, e isso esteve presente em todos os filmes que ele dirigiu.
Mas o grande mérito de Oito e Meio está no seu compromisso com o cinema como fantasia. Para ele, a recriação da realidade pela arte é um dos pontos fundamentais de um cineasta, um compromisso perante a vida e a arte, pontos inegociáveis. O ponto de vista de Oito e Meio está entregue a Guido, suas crises existenciais e ao inconsciente. A metalinguagem no filme está ali o tempo todo a confundir o que é enredo ou uma mera intervenção de Fellini sobre o processo do trabalho em cinema. Todos os sinais nos levam a um toque autobiográfico presente a todo o instante na obra. Mas não que isso se configure como elementos ilustrativos da vida de Fellini, a realidade tal como ela é, aqui é execrada e negada com todas as forças, assim como o racionalismo e o intelectualismo. É preciso resgatar o personagem do crítico de cinema Daumier no filme, como aquele que a tudo pondera com um discurso racional sobre os elementos pessoais e superficiais postos na obra a ser filmada por Guido. Às palavras ferinas de Daumier, Fellini contrapõe imagens cada vez mais delirantes vindas do inconsciente do artista. A figura do crítico Daumier muitas vezes foi entendida como cômica por alguns estudiosos de Oito e Meio, mas eu prefiro utilizar como uma definição mais precisa a palavra ironia, por esta posicionar uma visão abertamente crítica ao intelectualismo estéril de Daumier. Fellini não introduz Daumier na trama como um elemento engraçado ou cômico, prefere inseri-lo como um pensador do cinema com uma visão equivocada ao almejar que o artista racionalize todo o seu processo de criação. De certa maneira, Fellini habilmente antecipa e responde com veemência as possíveis críticas, em especial ao seu excessivo devaneio personalista, que Oito e Meio poderia receber após o lançamento nos cinemas.
Mais do que nunca, Oito e Meio reafirma a ideia do lúdico, do viés cinematográfico por excelência, inovador, reflexivo e autorreflexivo, com profundas nuances autobiográficas, um poderoso encontro do homem Fellini com o artista Fellini, e às vezes, por demais perturbador, um ápice da estética felliniana, com seus excessos narrativos e um barroquismo imagético típico do diretor, acrescidos da música inebriante e circense de Nino Rota.
Em Fellini, o circo, antes de ser uma mera citação ou ilustração, deve ser entendido como parte integrante de sua concepção fílmica. Ele é algo orgânico à própria mise-en-scène felliniana, nos corpos, no humor presente nas cenas, na fantasia do ambiente e sempre no desconcerto da câmera, esta sim sempre a bailar como um trapezista, um mágico ou um palhaço. A câmera em Fellini era a própria fantasia e a reafirmava incessantemente. Portanto, a construção do imaginário felliniano, o circo assume um papel estruturante em sua exegese. Como o próprio Fellini afirma, "esse tipo de espetáculo fundado sobre o deslumbramento, a fantasia, a brincadeira desmesurada, a fábula, a ausência de significações intelectuais é, justamente, o espetáculo que me convém". O ato subversivo de Fellini vinha especialmente do circo, de sua estrutura anárquica, crítica e zombeteira.
Fellini está entre um seletíssimo grupo de diretores que conseguiu criar um mundo cinematográfico à sua imagem e semelhança. Mais do que conceber um estilo, Fellini criou um universo facilmente identificável, ao ponto de vermos um filme e logo o reconhecermos como seu. Em Oito e Meio, Fellini deu um passo decisivo para consolidar esse imaginário próprio e para solidificar o que hoje facilmente nomeamos de universo felliniano.
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