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OS VIVOS E OS MORTOS - Direção de John Huston

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A epifania como força desestruturante

Por Marco Fialho

"Sua alma acercava-se da região habitada pela vasta legião dos mortos. Pressentia, mas não podia apreender suas existências vacilantes e incertas. Ele próprio dissolvia-se num mundo cinzento e incorpóreo. O mundo real, sólido, em que os mortos tinham vivido e edificado, desagregava-se."
                                                James Joyce, do conto "The dead".

A singeleza nos toca por inteiro, e por isso nos envolve, quando lemos ou vemos "Os vivos e os mortos". Uma música do interior da Irlanda evocando sentimentos e entoando um determinado passado, como um sino com o seu repicar a reabrir uma janela do tempo e provocando uma epifania. Essa pode ser uma brevíssima síntese do conto de James Joyce chamado "The dead", uma obra de câmara, um lamento sincero sobre o ato de viver e amar. 

"Os vivos e os mortos" marca um feliz encontro artístico do cineasta John Huston com a obra genial do escritor irlandês James Joyce. O título em português tanto do livro quanto do filme foram alterados, o que mexe com o sentido pensado pelo escritor e mantido pelo diretor Huston, em que prevalece o uso do singular: "The dead", isto é, "O morto". A tradução desse célebre livro de contos de Joyce, "Dublinenses", publicado pela Civilização Brasileira, é de autoria de Hamilton Trevisan, que preferiu adotar o título do conto no plural "Os mortos". Já o filme foi lançado com um outro título, "Os vivos e os mortos", extraído de uma parte do texto final da obra. Me detenho nos títulos para pensar acerca do quanto isso impacta no leitor e no espectador, já que as mudanças foram todas realizadas na tradução para o português, tendo o diretor do filme se mantido fiel ao título original do conto. A decisão por alterar, nesse caso, implica  em uma interpretação dos editores e dos distribuidores brasileiros do sentido da obra. A literalidade respeita antes de tudo a manutenção de um fato crucial da história do conto em que se detona uma reflexão sobre a vida e a morte, ou melhor dizendo, sobre o sentido do viver e de morrer. Não se trata de uma perfumaria, mas sim de tirar do espectador a sua capacidade de extrair suas próprias conclusões, fato esse muito corriqueiro nos processos de nomeação de obras estrangeiras. 

Mas voltemos a James Joyce e John Huston, nossos autores literário e cinematográfico, respectivamente. O livro "Dublinenses", lançado em 1914, é a primeira publicação em prosa do escritor irlandês em que sua verve se mostra plena e seu estilo e domínio narrativo salta aos olhos dos leitores. Ficando só em "The dead", o texto se desenvolve com uma perspectiva cinematográfica espantosa, e estamos aqui falando de 1914, onde o cinema sequer tinha uma história construída mundialmente, ainda vivia uma primeira infância. Joyce centra sua narrativa nos personagens e suas ações nos espaços, destacando desse último apenas o que é rico para a história, não perdendo tempo com descrições pormenores das coisas e objetos. Cria indicações imagéticas precisas, assim como vai pacientemente inserindo elementos e características pontuais de seus personagens, de maneira a sustentar como cada um deles estão representados na história e na sociedade, quais os papéis exercem em uma e na outra. 

Os personagens de Joyce se fazem e se constroem no decorrer da própria ação, um desafio narrativo que ele se impõe e que faz da leitura de seus contos algo de muito empolgante. Um escritor moderno a desafiar as normas clássicas do narrar. Joyce explana personagens e espaços como se nada fosse realmente relevante, como se a vida fluísse permanentemente em sua frente e ele só registrasse tudo. Mas sempre tem uma surpresa, um pequeno detalhe a nos revelar que a vida é sempre mais do que vemos. Os subtextos e situações subliminares possuem seus encantos e surpresas, e são elas que Joyce burila e acalenta para depois nos entregar uma visão inusitada e inesperada da vida tal como ela é, embora sejamos cotidianamente cegos a ela. Joyce explora subterrâneos humanos, mas não do ponto de vista do psicologismo, mas sim da própria imensidão existente por trás da vida de cada um. Seus personagens são comuns, seres que vivem sem notoriedade, mas vivem porque afinal todos precisam viver, independente da sua posição social.                   

É muito prazeroso o esforço de imaginar Huston lendo Joyce e vendo o filme fluir na sua cabeça, de tão cinematográfico que o conto nos é apresentado. A ordem da história do conto é seguida por Huston, que só acrescenta poucos elementos mais dramáticos, mas sempre cuidando para não exagerar na dose, pois Joyce sempre caminha suas histórias para uma abordagem desdramatizada. Tudo leva a crer que Huston procurou preservar ao máximo a narrativa de Joyce para mostrar o quanto de cinematográfico havia na proposta literária de Joyce. "The dead" é uma obra seminal de Joyce, antes dele romper com a tradição literária de seu tempo e propor formas dispostas a implodir com a narrativa clássica, como fez quase 10 anos depois com Ulisses (1922) e mais tarde ainda com o experimentalismo de "Finnegans wake" (1939) e seu ousado uso de neologismos. 

Mas em "Dublinenses" os desafios já estavam presentes, embora ainda incipientes, em seus aparatos narrativos calcados em descrições de rotinas, que aparentemente pouco empurravam a história para frente. Para o jovem Joyce o que importava era entender personagens a partir de suas ações e papéis na sociedade. Por isso, nos contos de "Dublinenses" já encontram-se traços audaciosos de pequenas subversões narrativas. Em "The dead" não é diferente. Sua estrutura é de uma aparente simplicidade, pela maneira descritiva pela qual Joyce nos permite entrar em uma tradicional família irlandesa, em suas contradições, o peso imposto pelas tradições e regras de convívio social, ditados por valores religiosos rígidos, dispostos a manter uma sociedade de pé, muitas vezes às custas do sacrifício da felicidade humana, em nome de uma segurança financeira e aceitação social.

Huston estabelece dois blocos básicos em seu filme (já contido no conto de Joyce): o da festa e o da volta para o hotel. No primeiro bloco, John Huston constrói a dinâmica da festa, o que ela nos revela daquele núcleo familiar e da sociedade. A câmera suavemente alterna entre planos próximos e gerais, que criam a relação ora entre os personagens ora entre eles o espaço da casa, por vezes opressor por ditar uma série de comportamentos tidos como aceitáveis socialmente. A preocupação com a aparência e com os ritos se faz mais importante do que supostas verdades. Os elogios são uma constante nesse universo e fortalecem essa comunidade, que só se sustenta por fazer parte de um ritual ocasional, onde as fragilidades são ocultadas pela falta de convívio diário e por um clima eivado por laços hipócritas, em que as diferenças são camufladas em nome de uma suposta educação dos convidados. Há ainda as relações com os subalternos, na qual Lily é explicitamente o principal elemento. Há um comentário de umas das anfitriãs da festa, a tia Kate, de que Lily não é mais a mesma, e em outro momento, o sobrinho Gabriel lhe dá uma gorjeta de fim de ano. São nesses pequenos tratos pessoais que as contradições emergem e sinalizam o quanto são retratos inconstantes desse grupo social.                                                

No segundo bloco do filme somos invadidos inesperadamente pela verdade e todo o ritual da festa vai se desmoronando. Nada escapa a crueldade dessa segunda parte. Tudo começa no final do primeiro bloco, quando Gretta, a esposa de Gabriel, escuta ao final da festa, uma desconhecida música chamada "The lass of Aughrim" que desperta nela uma epifania. O passado torna-se então um imperativo, ele domina involuntariamente a personagem, ela se transporta integralmente a ele, como se nada mais existisse na vida a partir daquele insight. O mais interessante a ser observado é a relação que esse momento estabelece com tudo o que ocorreu até então na história. O baile, as conversas e tudo o que vimos até então precisa ser ressignificado. O marido faz esse movimento e nós também precisamos fazê-lo. O efeito provocado está para além do diegético e do próprio filme. Ele é um golpe em cada espectador. O esplendor de cada cena do baile das tias precisa ser repensado. O mundo ideal, tal como está ali, com sua aparente inocência precisa ser recolocado no tempo e no espaço. É isso que as epifanias fazem, por em suspenso de uma vez só tempo e espaço.                                                                                                
"Os vivos e os mortos" vem encerrar a carreira de Huston, que já tinha 80 anos e faleceria logo a seguir, portanto, na sua decadência física, embora em plena atividade artística. E pensar que na altura da vida já havia realizado filmes memoráveis inscritos e reconhecidos como grandes clássicos do cinema mundial ("Relíquia macabra" - 1941; "O tesouro da Sierra Madre" - 1946; "Uma aventura na África" - 1951; "Moby Dick" - 1956; "Os desajustados" - 1961; "Freud, além da alma" - 1963; "O pecado de todos nós" - 1967 e "A honra do poderoso Prizzi" - 1985, para citar apenas alguns títulos) e ter trabalhado com atores dos mais renomados como Marlon Brando, Humphrey Bogart, Marilyn Monroe, Elizabeth Taylor, Montgomery Clift, Sean Conery, Jack Nicholson, Gregory Peck, Peter Lorre, Clark Gable, Katharine Hepburn, Richard Burton, Debora Kerr, Ava Gardner, Paul Newman, Michael Caine, Albert Finney, Kathleen Turner e sua filha Anjelica Huston. Todos esses nomes grandiosos desenham algo sobre a sua personalidade explosiva, sua capacidade de aglutinar talentos em torno de projetos ambiciosos. 

Basta assistir aos filmes de John Huston para vermos sempre seus personagens solitários e desajustados, embora aguerridos, corajosos e insistentes, mesmo quando a perspectiva da derrota fosse eminente. Personagens aparentemente moribundos sempre o interessaram, esses que parecem derrotados às vistas da sociedade. Numa era onde o cinema de Hollywood preocupava-se com roteiros bem construídos e histórias fortes, Huston foi um grande destaque, com seu espírito aventureiro de lutador de boxe, a mostrar sua influência como realizador imponente a dirigir clássicos indubitáveis do cinema. Mas chama justamente a atenção suas duas obras finais: "À sombra do vulcão" e "Os vivos e os mortos". Com essas obras, Huston se insere contundentemente em um cinema contemporâneo, profundamente autoral, marcado por uma mise-en-scène moderna, onde a relação dos personagens com o cenário assume uma prerrogativa narrativa, não só como emolduramento ou caracterização, mas como parte viva e integrante do próprio personagem. E em "À sombra do vulcão" isso fica muito nítido, como o México não é só a paisagem, ainda mais porque antes de retratar um elemento metafórico da morte iminente, existe algo ali no ambiente que expressa o próprio espírito do personagem, seu abandono e sua reflexão sobre o seu estar no mundo. Esse traço foi mantido vigorosamente em "Os vivos e os mortos". O pensar profundamente sobre a vida e a morte era o motor dessa fase final e a escolha por filmar "The dead" não poderia ser mais propícia para Huston, como de fato o foi mesmo.     

Há algo de essencial nessa obra, que nos conclama de imediato a pensar sobre nós, o que fizemos e fazemos com nossas vidas. Há metáforas sutis e visualmente belas propostas por Joyce e endossadas por Huston. A neve fria é uma delas a nos fustigar, ela cai sobre todos, os vivos e os mortos, emaranhando fortemente um ao outro, construindo uma impactante imagem acerca do nosso papel no mundo dos vivos. A epifania vivida pela personagem Gretta (Anjelica Huston) passa a ser sentida por todos nós, pois a revelação dela recai pesada e desconcertadamente sobre nós espectadores. Esse é o estranho poder que as artes provocam na humanidade, o mesmo de um terremoto, o de tirar dela o seguro chão debaixo de seus pés. Joyce assim o fez com seu conto publicado em 1914, com John Huston, 73 anos depois, endossando maravilhosamente com seu filme. A obra de arte parece mesmo não ter prazo de validade.               

01/12/19, especialmente escrito para a revista virtual "LumeScope".

Comentários

  1. Assisti ao filme e já me programei para reler o conto. Que reflexão necessária para termos uma compreensão integral das intenções do filme.

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