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O PARAÍSO DEVE SER AQUI - Direção de Elia Suleiman

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A perplexidade como método

Por Marco Fialho

Uma pergunta feita com frequência para quem trabalha com cinema é sobre a definição do que é cinema. A sensação que temos quando assistimos a um filme como "O paraíso deve ser aqui" é de que a dificuldade de responder a essa pergunta parece se ampliar um pouco mais. O que o filme nos induz a pensar sobre isso é que qualquer definição preestabelecida sobre o cinema só serve para limitá-lo. Claro que já há correntes conscientes sobre o caráter ilimitado e dilatado do que seria o cinema, de que ele não pode mais ser colocado em uma definição precisa e limitadora. O que o filme de Suleiman nos interroga é mais do que sobre quem está narrando essa história, pois sua presença fisicamente marcante em cena se contrapõe com sua postura basicamente silenciosa, que sugere em um primeiro momento uma suposta neutralidade, que aos poucos vamos entendendo como enganosa. E se isso é um fato, é necessário pensar em como essa fisicalidade é concebida, para aí sim, se extrair mais riquezas desse inusitado e belo filme.         

Antes de tudo, a presença do diretor Elia Suleiman como protagonista instaura quase uma presença observacional, já que ele praticamente nada fala. Mas isso não quer dizer que Elia esteja ausente, pois o que ele filma e como ele o faz muito diz sobre o cinema como dispositivo cinematográfico. Sua presença se vislumbra mais como uma silenciosa perplexidade diante do mundo. É um olhar que se estarrece comicamente sobre o absurdo da vida contemporânea. É um olhar de fora, mas não alheio, que interroga sem perguntar e estabelece o cômico diante do ridículo do circo da vida.
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"O paraíso deve ser aqui" propõe uma narrativa por meio de um dispositivo criado por Suleiman, mas ela não se conforma classicamente como tal. São gags unificadas pela presença do diretor, todas encenadas, embora inseridas dentro de um cotidiano reencenado. O seu dispositivo se assemelha muito ao do cineasta francês Jacques Tati, como uma reelaboração performática do cotidiano. Mas se tem algo que amarra tudo, esse elemento é a sua condição de palestino. Não à toa o território é uma constante no filme. O que é ser palestino na Palestina, em Paris ou Nova York? Mas antes de partir de indagações, Elia parte da perplexidade. As perguntas somos nós que como público temos que elaborar. Tradicionalmente os filmes nos lançam respostas ou perguntas. Esse não é o caso de Elia, pois o que ele nos incita é a criar as nossas próprias perguntas a partir de suas performances observacionais.

Se tem uma cena que de certa forma não obedece essa performance que domina todo o filme, é justamente a primeira. Ela de certo destoa por não ser uma cena onde predomina o caráter observacional de Elia. Essa cena se insere muito mais como uma parábola religiosa sobre a encenação e os rituais da vida, e também se apresenta como um cartão de visita cinematográfico de Elia Suleiman. Ali a farsa e o autoritarismo se colocam como motor. Tudo leva a crer que Elia Suleiman assim entrevê uma dose de violência no seu cinema autoral, como resultado de uma imposição (ora voluntária, ora involuntária) de um ritual. Claro que o tom cômico está ali presente, como um dispositivo que põe em suspenso a situação narrada. O cômico é que levanta a reflexão, o que nos incita a perplexidade.
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Mas refletir sobre "O paraíso deve ser aqui" nos impulsiona para a questão do território e como se pode inserir a questão do palestino nesse contexto mundial. Com extrema sutileza, Suleiman está a falar sobre a desterritorialização do povo palestino, que virou um estrangeiro em qualquer lugar do mundo, inclusive em sua terra de origem. Essa é a sensação, a atmosfera que ronda o filme. Ser palestino se tornou um estigma, um mal, com um potencial terrorista, enfim, um perigo eminente. Suleiman vai para Paris e Nova York e independente das diferenças entre as culturas, ser palestino não agrega nunca positividade, no máximo, exotismo, como na cena da chegada dele a Nova York quando o motorista de táxi não cobra sua passagem por ter visto um palestino pela primeira vez na vida.

O filme de Elia Suleiman ciclicamente se estrutura pelos territórios. Começa e termina na Palestina, mas antes perambula por Paris e Nova York. Nesse deambular, Elia revela ainda a sua visão insólita e perplexa sobre os territórios visitados. Em Paris, ele revela o formalismo empedernido da vida dos franceses e a situação subalterna ocupada pelos refugiados vindos da Ásia e África na pirâmide social daquele país. As performances encenadas são poéticas e críticas a um mundo falso e espetacularizado nas relações, onde a cena das cadeiras do chafariz e a da mulher negra limpando a loja de modas são reveladoras e sintetizam sua visão sobre o todo. Já em Nova York, Elia nos mostra com a sua máxima perplexidade o clima vertiginoso e violento de uma sociedade assentada na comercialização a todo o custo, da vida calcada na extravagância de homens vestidos de hambúrgueres e andando armadas na rua, como se revivessem o velho oeste. Há um misto de retrato e encenação do real interessante, onde o humor desconcerta situações de preconceito, como a revista com detector de metais no aeroporto e a solução cômica de Elia.   
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Elia apela para uma consulta às cartas de tarô e a pergunta que vem é: "haverá Palestina?" Assim, volta-se novamente para a discussão acerca do território. E a resposta é categórica: "sim, haverá! Mas não para mim nem para você!". Mas quando o diretor volta a seu "território", o que vemos é o mesmo que vemos na parte inicial, uma terra onde ainda reina uma matriz cultural arraigada em tradições onde o rural ainda está vívido no cotidiano. Os limoeiros, as relações ainda muito próximas, onde a palavra vizinho ainda é forte e uma dose de ritualização nas relações sobrevivem. Aí vem uma lembrança ouvida em um bar de Nova York que fica ressoando e que parece trazer uma grande dose de verdade: "todos os povos bebem para esquecer. Os palestinos não, eles são os únicos na Terra que bebem para lembrar".

Depois de ver essa pérola que é "O paraíso deve ser aqui" (o título já traz uma dúvida permanente) ficamos a pensar sobre tudo isso, no quanto é difícil nos libertarmos de nossas origens, em especial quando você vive marcado, como um estigma. O que Elia Suleiman faz é propor uma mudança da maneira de se olhar para o palestino por meio do cinema e assim dividir o peso de um preconceito com o mundo. A poética da presença desconcertante do diretor nos embala e conclama a perguntar sobre o lugar de cada um nesse mundão vasto, plural e desigual que é o nosso.

Visto no Estação Net Gávea, no dia 22/12/2019.
Cotação: 5/5.                                                                       

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