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UM DIA DE CHUVA EM NOVA YORK - Direção Woody Allen

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A homenagem nostálgica de Allen ao cinema, ao jazz e a Nova York

Por Marco Fialho

Desde que a Amazon colocou "Um dia de chuva em Nova York" na geladeira, ou melhor, no freezer, os fãs de Allen ficaram sem os seus filmes anuais. Allen processou a mega empresa de entretenimento e conseguiu reaver seu filme, mesmo sem ter a garantia que o exibirá nos Estados Unidos. Allen o lançará em outras bandas, entre elas felizmente está o Brasil. Como Allen jamais foi condenado pelas denúncias que Mia Farrow capitaneia já há alguns anos, a atitude da Amazon soou muito mais como um ato hipócrita de censura (especialmente pressionada pela campanha do Me Too contra Woddy Allen).

Enfim, com um ano de atraso o público brasileiro poderá assistir o novo Allen. E "Um dia de chuva em Nova York" pode não ser o seu melhor dos últimos tempos, mas traz um resgate surpreendente do diretor de um tipo de comédia romântica tão afeito a ele, mas abandonado nas suas últimas produções. Esse é um Woody Allen novaiorquino, inebriado pela paisagem nostálgica de uma cidade que não existe mais, agitada na frequência de um jazz que oscila entre o melancólico e o divertido. Talvez essa seja a melhor definição desse seu novo trabalho, o de tentar se equilibrar entre a tragédia e a comédia, entre o sonho e a realidade. Assim, a fotografia do genial Vittorio Storaro também caminha, ora pelo lúdico âmbar, ora por uma luz quase crua, sem grandes expressividades.
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Em "Um dia de chuva em Nova York", Allen retoma seus diálogos mais afiados, o seu cruel humor judaico, tão típico de sua carreira nos anos 1970 e 1980, mas que andava meio adormecido. Há uma atenção visível nas suas famosas gags (a do riso brochante é a melhor), mesmo que nem sempre elas funcionem no filme. Tudo se passa basicamente em um único dia em que um jovem casal Ashleigh (Elle Fanning) e Gatsby (Timothée Chamalet) vai a Nova York para uma rápida entrevista com um diretor de cinema de 30 minutos e poderem ter um longo final de semana romântico a sós na mágica cidade. Claro, que nada sai como planejado, afinal no meio do caminho tem o cinema, essa máquina dos sonhos difícil de racionalizar as ações humanas, com seus egos inflados e problemáticos.

O cinema, o sonho e a chuva são elementos de naturezas muito diversas: um natural (chuva); outro puro artifício (cinema); e outro etéreo (sonho). Allen joga com todos numa grande homenagem ao cinema, a música e a cidade de Nova York. O ambiente lúdico predomina, e Allen usa do ardil cinematográfico do filme dentro do filme para juntar personagens, mas não o faz pela magia, mas sim pelo ofício do cinema, da repetição insolente e massante. No cinema tudo pode acontecer, pois a magia é pura construção. Timothée Chamalet cria um Gatsby (personagem-homenagem ao romance de Fitzgerald) deslocado dos personagens típicos do alter ego de Allen, não incorre no erro de tantos atores que tentam imitá-lo e com isso traz um frescor necessário para o seu papel. Gatsby é rico, sem rumo, ama jogos de azar e jazz, é um descolado deslocado do seu meio e Nova York é um ótimo cenário para novas aventuras, por mais que o casal não as tenha planejado. Já Ashleigh é o devaneio em pessoa, de um deslumbramento com o novo e Nova York é o locus perfeito, onde tudo pode acontecer. A participação de Diego Luna como Francisco Vega, um típico galã narcisista hollywoodiano é afetado, em um tom acima, mas funciona dentro da atmosfera cômica montada por Allen. Melhor está Selena Gomez como Chan, uma irmã da ex-namorada de Gatsby, que adora dar notas para os desempenhos sexuais do passado do rapaz. Selena encontra o ponto certo entre o humor, o romantismo e o drama para roubar algumas cenas. Já Jude Law não consegue achar nem o próprio personagem, o roteirista Ted Davidoff soa deslocado demais do enredo, que oscila entre um profissional oportunista e um machista bocó fascinado por um rabo de saia após saber da traição da esposa.
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"Um dia de chuva em Nova York" traz realmente um Woody Allen menos brilhante do que o habitual, mas em contrapartida, nos entrega uma obra mais ágil do que os seus últimos trabalhos. Um diretor capaz de se divertir com a leveza de sua verve de comediante e isso também é bom de se ver. Nova York continua sendo uma referência, mesmo que os traços de decadência prevaleçam. Entretanto, Allen a explora com conhecimento de causa, a partir de seus afetos e recantos preferidos. Gatsby, como seu alter ego, incorpora muitos traços de personalidade de Allen, como seus gostos culturais. Tudo soa antiquado nesse "Um dia de chuva em Nova York", pois a sua Nova York imaginária está em franco colapso e os piano-bar, o jazz dos Anos Dourados e os jogos de azar são exemplos disso, de uma cidade que caminha para uma outra lógica geracional. E é disso que este filme trata fundamentalmente, dessa cidade que guarda seu passado em pequenos detalhes, mas que no todo já aponta para outras direções.

Outros detalhes entregam as paixões de Allen por uma determinada Nova York, como a do hotel em frente ao Central Park (Allen mora também na mesma localidade). Essa é a magia proposta por Allen, a de reviver a sua Nova York, a que ainda está viva e pulsante nele (talvez um dos últimos dessa estirpe de nova-iorquinos). Não casualmente, ao final, o Central Park se permite ser o espaço onde a beleza de um amor pode acontecer, tal como nos filmes clássicos da juventude de Allen. E a referência da chuva como um clichê cinematográfico da Era das grandes comédias românticas (também cada vez mais sem sentido em uma cidade tomada pela desigualdade social e a violência inerente dessa situação). Esse "Um dia de chuva em Nova York" mantem um tom narcisista, nostálgico dessa cidade e tenta retomar uma ideia de cinema que não existe mais, que buscava instaurar uma aura mágica na vida das pessoas, uma ideia de que viver só era possível graças ao sonho da existência e da possibilidade de um grande amor, e que ele estaria ali na esquina, ao seu alcance.

Aos 83 anos de vida, tudo indica que Allen acusou o golpe. A idade chegou e o presente já não faz tanto sentido para o nosso diretor, só o passado que ainda habita nele. O crescimento avassalador dessa cidade, que como diz Gatsby traça suas próprias narrativas, não satisfaz mais ao velho Allen. Das músicas, passando pela fotografia, muitas vezes radiante de Storaro, há uma visível ode não só ao espaço (Cidade de Nova York), mas a uma memória encantada de um determinado tempo desse lugar que Allen busca reviver pelo cinema. Não casualmente, em determinada hora, Gatsby puxa uma tirada sensacional que tão bem define a nostalgia que ronda o filme: "Eu preciso de bebida, cigarro, vinil e filmes antigos". E perante o peso desse Século 21 (para todos nós, não só para Allen), o pensamento que fica é: nós também Gatsby, nós também!

Visto em uma cabine de imprensa, no Cinemark Botafogo, no dia 12/11/2019.
Cotação: 3 e meio/5

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