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PARASITA - Direção de Joon-Ho Bong

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A radiografia de uma sociedade podre

Por Marco Fialho

Muito se tem comparado "Parasita" e "Bacurau". Mas essa analogia não passa da página dois. As diferenças são bem mais acentuadas do que as semelhanças. Se os dois filmes misturam gêneros, "Parasita" passeia mais pelo humor, enquanto "Bacurau" pelo faroeste filtrado por Glauber Rocha. O gosto pelo slasher sim, pode ser um traço em comum entre as duas obras. Já a crítica proposta pelo filme coreano tem um fundo mais social enquanto o do brasileiro um cunho mais político. Um fala de união de um grupo, o outro de um traço mesquinho encruado no âmago da sociedade.

Entretanto, o nosso foco aqui é "Parasita", filme de Joon-Ho Bong (O Hospedeiro, Mother e Okjia). A obra pode ser dividida em dois momentos, um bloco inicial, quando a família do Sr. Kim, vai ocupando todos os postos de trabalho na casa do Sr. Park, em que o tom cômico prevalece. Em um segundo bloco, quando a figura do parasita é revelada (divisor de água na trama), o slasher predomina. "Parasita" trabalha questões interessantes, como a da necessidade dos ricos terem que conviver com os pobres, por um motivo muito simples, para não precisarem trabalhar. A precarização do trabalho está no cerne dessa intrigante obra, que de maneira criativa põe o dedo na ferida do capitalismo sul-coreano e expõe as agruras sociais que emergem do seio das contradições inerentes ao sistema. Mostra o quanto de crueldade e submissão existem por trás das relações aparentemente cercadas pela cortesia.           
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O mais incrível e perturbador no filme está no fato de Joon-Ho Bong tratar os personagens despossuídos como um espelho dos patrões. Assim, "Parasita" esboça uma crítica à sociedade dos privilégios, mas sustenta em paralelo que ela só se perpetua graças ao espelhamento dos despossuídos. Essa moeda reversa reforçada por Bong é o seu grande diferencial. Mais do que uma denúncia do mundo dos ricos, "Parasita" propõe uma radiografia cruel da sociedade como um todo.

As dicotomias sociais são construídas pelas diferenças abissais entre os espaços de cada universo, o dos ricos e dos pobres. Segundo Bong, as artimanhas de sobrevivência dos pobres são parte do jogo, não subversão do jogo. A fascinação pela riqueza é tal que os pobres a querem para eles. Há uma sujeição complacente dos pobres, que aceitam as regras do jogo tentando extrair dos ricos quaisquer míseras migalhas, enquanto pensam em uma estratégia para também se tornarem ricos. O arranjo cinematográfico de Bong expõe a fragilidade de todos os personagens e ele o faz por meio de uma caracterização do espaço e dos personagens. Em algum momento da trama, Park, o patrão, diz que  distingue seu motorista pelo cheiro. A divisão social também está imageticamente retratada com a hierarquização do espaço. Os ricos nas partes de cima da casa enquanto os pobres sorrateiramente nos subsolos.               
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O maior absurdo retratado em "Parasita" está contido na valorização que os personagens dão aos valores burgueses. Os sonhos dos mais pobres é ocupar o lugar do rico. Contraditoriamente, a existência do humilhante subsolo muito diz sobre a realidade em si, que solapa os sonhos de ascensão social dos mais pobres. A violência torna-se a ferramenta dessa sociedade assentada na profunda desigualdade e com ausência de mobilidade. A ideia de coletividade fica em segundo plano e a sobrevivência dos laços familiares protagoniza esse perverso contexto. A metáfora está dada: o que fazer quando os valores de riqueza e poder prevalecem e a condição social abastada se torna as metas a serem alcançadas por todos?  "Parasita" expõe a crítica, cabe ao espectador a reflexão sobre os valores que sustentam um organismo social, que apesar de carcomido ainda se encontra de pé.

Visto no Estação Net Rio 4, no dia 16/11/2019.

Cotação: 4 e meio/5

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