Por Marco
Fialho
Um filho
acompanhado de uma mulher volta para a casa em região ribeirinha após o pedido
do pai. Chegando lá se confronta com seu nebuloso passado e terá que decidir
sobre o seu futuro. Esse é o fio de história que Frederico Machado nos
apresenta em "Órbitas da água", dividida em três partes: órbitas,
lodo e água. Tudo o mais são peças e fragmentos a serem conectados pelos
espectadores no decorrer de pouco mais de uma hora de duração. O filme é o
quarto longa de Frederico e o que fecha a trilogia dantesca ("Exercício do
caos" e "O Signo das tetas"), inspirada na obra poética de seu
pai, o poeta Nauro Machado.
Órbitas da
água é dos filmes de frederico Machado em que mais ele se expressa pelos corpos
de seus atores e o aspecto sensorial é mais acentuado pelos planos e
enquadramentos escolhidos. Visivelmente há uma preocupação permanente em
despertar sensações nos espectadores. Os sons são trabalhados com minúcia rara
de se ver hoje no cinema. A música, os lamentos e o som ambiente constroem
camadas fundamentais para acentuar a angústia presente entre os personagens.
Enquanto que a camada sonora nos empurra para dentro do filme, a camada
imagética se mostra impenetrável e nos afasta. Se estabelece um embate
interessante e sensorialmente perturbador. A atmosfera está sempre oscilando
entre algo que esbarra no delirante, na memória melancólica e na dureza do
presente a ser encarado. Os olhares dos personagens trazem um peso para cada
cena, instituindo uma tensão permanente, como se alguma tragédia estivesse para
acontecer a qualquer momento.
Eloquentemente,
os corpos possuem um papel central em "Órbitas da água". Eles se
roçam, esfregam, trepam, trabalham, sonham, morrem e se matam. Eles parecem
disponíveis, sem amarras, mesmo que a realidade esteja lá para contradizer a
simbólica cruz cristã, presente em várias cenas. Triângulos, trocas de casais,
bissexualismo e transas lésbicas permeiam as relações lascívas entre os
personagens. Aspectos formais também reafirmam as instabilidades sexuais.
Frederico insiste em filmar várias cenas com presença do primeiro e do segundo
plano, bastante expressivo para nos revelar que existe no filme sempre algo por
trás do que vemos, mesmo que a imprecisão da imagem embaçada prevaleça. A
câmera orbita, e faz em muitas das vezes, os personagens flutuarem na tela, o
que muito revela sobre eles, em especial na primeira parte do filme, como se os
mesmos estivessem à deriva.
O uso de
planos próximos e de closes, nunca permitem uma visão clara da cena, nos
obliterando o todo. Assim o filme nos dá a sensação de ser sempre fugidio, como
se estivéssemos perdido algo do enredo. A história se fragmenta em dois níveis:
no plano narrativo, com informações sempre incompletas dos fatos; e no plano
imagético, com contínuas imprecisões óticas que caminham para o abstrato.
"Limite" (1931), de Mario Peixoto, obra-prima e máxima do nosso
cinema, parece ser uma grande influência espiritual desse "Órbitas da
água", que possui muitas imagens metafóricas a serem decifradas.
Com
diálogos econômicos e fortes, entremeados pelas belas e potentes poesias de
Nauro Machado, Frederico nos brinda com "Órbitas da água" com uma
obra densa, com atuações precisas, orgânicas e bem dosadas de seu elenco
principal, formado por Auro Juriciê, Rejane Arruda, Antonio Saboia, Flavia
Bittencourt e Tácito Borralho. Há um conjunto harmonioso nas interpretações,
todos os personagens são profundamente solitários, impingidos por uma impiedosa
tristeza vinda de um passado opaco e violento. Tudo apontando para um convívio
social doloroso para cada um dos personagens, eles trazem a dor nos olhos
(alma) e no corpo. O trabalho do corpo e do olhar (alma) estão integrados de
tal maneira, que conseguem sustentar a difícil dramaturgia proposta pelo
diretor, marcada por uma narrativa descontínua, que traz mais dúvidas do que
certezas ao espectador.
A divisão
em três capítulos (órbitas, lodo e água) mais do que explicar racionalmente o
enredo, funciona como organização espiritual de "Órbitas da água". Em
Órbitas, há a volta do elemento (corpo) que trará a pertubação ao local; em
Lodo, a reverberação do passado e a preparação do embate; e em Água, a fluidez
do líquido no acerto de contas e no futuro indeterminado. Mais uma vez,
Frederico Machado investe em uma parábola e se volta para o universo opressor
da família patriarcal, tão típica da região nordestina, se utilizando de uma
estrutura narrativa fragmentada para expressar os destroços de uma ideia falida
de família católica, que na prática não existe mais. Como bem diz o personagem de Antonio Saboia: "família
(leia-se a cristã) é o abandono do indivíduo por uma ideia maior". Será
mesmo? A interrogação paira no ar e põe todas as certezas em suspenso. É bom
lembrar, que em "Órbitas da água", o corpo é o instrumento do
inconformismo, do desejo e da tragédia, enquanto a música, a expressão da
transformação da alma e da inevitabilidade da morte.
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