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O IRLANDÊS - Direção Martin Scorsese

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A máfia e o sentido da vida

Por Marco Fialho

Recentemente, o diretor Martin Scorsese se meteu numa polêmica sem fim ao afirmar que, na sua visão, os filmes da Marvel não podiam ser encarados como cinema, mas como peças promocionais para atrair público para os parques temáticos da Disney e afins. Claro que célebre diretor norte-americano exagerou na medida. Mas a melhor resposta que ele podia dar seria outra, seria a de fazer um filme, um cinema com C maiúsculo para não restar dúvida de qual terreno a discussão estava partindo. Decerto existe múltiplas definições de cinemas e a exclusão de qualquer uma delas seria arbitrária, mesmo que concordássemos que o cinema dominante (que chega a ocupar até 90% das salas comerciais) não seja um bom exemplo de pluralidade de abordagens tanto na esfera do narrativo quanto no da construção do seu conceito imagético. Basta lembrar o que foi em 2019 o fenômeno "Vingadores Ultimato" nesse quesito, o quanto esse filme fechou espaços para outros filmes e cinematografias, em um ano que a cota de tela para o nosso cinema não foi sequer estabelecida pela ANCINE.

Se usássemos um termo muito utilizado no futebol, diríamos que a resposta de Scorsese deve ser dado dentro de campo, no caso aqui, fazendo um filme. E foi o que ele fez ao lançar "O Irlandês", um drama épico com uma narrativa extremamente rigorosa, uma concepção de imagem luxuosa e interpretações para lá de impecáveis. Enfim, uma obra de arte do mais alto quilate e respeito. Um filme para ser visto na plenitude do cinema, com projeção em alta definição, tela grande e som potente e límpido, o que contradiz com o conceito que a produtora do filme, a Netflix, vem implementando. Mas o que importa mesmo é que "O Irlandês", surpreendentemente, e contrariando as práticas da Netflix, foi lançado primeiro nos cinemas, para depois sim estrear na sua famosa plataforma. 
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A trajetória de sucesso de Scorsese sempre nutre grandes expectativas quando ele anuncia uma nova produção. "Taxi Driver", "Touro Indomável", "O bons companheiros", "A última tentação de Cristo" e recentemente "O Lobo de Wall Street" são obras potentes e respeitadas desse realizador de peso. A Volta a um filme de gangster também gerou curiosidades para o seu novo filme e Scorsese não decepcionou, dirigiu mais uma pérola de seu cinema. A grandiosidade de "O Irlandês" pode ser visto em vários aspectos. Como um típico filme de gangster; como uma metáfora do sentido da vida; como um manifesto de como se estrutura a política em sua faceta mais aparente, mas também em suas entranhas mais sujas e comezinhas; como uma homenagem aos trio fantástico de atores (Al Pacino, Robert De Niro e Joe Pesci) e seus históricos papéis como mafiosos; como uma síntese mais profunda dos filmes de máfia do próprio Scorsese. São todas análises pertinentes e coerentes por expressarem possibilidades que estão latentes em "O Irlandês".

Há no filme, um encontro encantador de De Niro e Al Pacino, dois ícones da representação norte-americana e dos filmes de máfia. Em cena, ambos estão tão à vontade que lembram duas crianças brincando com um brinquedo novo. Desde que aparece em cena, Al Pacino toma para si um notório protagonismo, com um De Niro oscilando mais, chegando até a servir de escada para que Pacino domine tudo com seu sindicalista Hoffa, até que De Niro se agiganta próximo ao fim do filme de uma maneira avassaladora. Há em "O Irlandês" uma câmera insinuante (marca indelével do estilo cinematográfico de Scorsese), com movimentos cadenciados que incitam e reivindicam para si um protagonismo, como se Scorsese também dissesse aos seus dirigidos que quer participar da festa.
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Nota-se em"O Irlandês" um domínio fora do comum de Scorsese dos meios cinematográficos. O desenho de produção é impecável, assim como o da montagem que faz as três horas e meia deslizar pelos nossos olhos. Há um sólido pensamento sobre a formação da América contemporânea, de como nos estertores da sociedade se movimentam forças nebulosas que controlam e ditam o todo político. Scorsese habilmente e sutilmente entrelaça o poder político partidário com o submundo que mantém cada peça da engrenagem maior girando. De repente, os cassinos cubanos fechados por Fidel Castro aparecem como parte integrante do jogo e dos interesses escusos que permeiam os bastidores da política norte-americana. Sorrateiramente, Scorsese emaranha política externa, interna, sindicatos e máfia em um jogo de xadrez soturno e mesquinho.

Um dos achados de Scorsese em "O Irlandês" está na riqueza em como cada personagem foi pensado e concebido. Frank, personagem de De Niro funciona como o narrador do filme, falando diretamente para a câmera (isto é, para nós espectadores). A câmera, tal como um personagem, logo na cena inicial, adentra na Casa de repouso a procura dele e quando o acha se coloca à sua disposição. Esse tom confessional estabelece uma fragilidade de Frank, pois seu estado é de uma visível solidão. Ele com certa impaciência, espera o dia da sua morte, ficamos na dúvida se a narrativa se esvairá a qualquer momento, já que estamos na dependência dos últimos sopros de vida de Frank. Scorsese retira o glamour tão comum nos filmes de máfia e abre uma distância expressiva com a famosa trilogia de Francis Ford Coppola (O Poderoso Chefão). Não há um traço sequer de heroísmo, idolatria ou algo que valha. A trilha musical se coloca ao longe da proposta envolvente de Nino Rota. Seu desenho prioriza em sua maioria, clássicos das épocas retratadas, com variedade de ritmos, que passa pelo blues, rock, mambo, rythm and blues, swing e a surpresa em ouvir um inusitado "Delicado" de Walter Azevedo. A música em "O Irlandês" se torna personagem ao nos dizer muito sobre o contexto da história.
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Mas tudo isso tem sentido, e muito. Scorsese investe muito em De Niro e no seu personagem Frank. Ele é ao mesmo tempo agente e testemunha da narrativa. Frank carrega a história, não só a dele, porém a de um país. Frank é um personagem repleto de simbolismos. Todos querem extrair dele a verdade. Dois estudantes de direito tentam subtrair dele revelações. Nada importa, apenas Frank sabe o preço a pagar por viver um presente miserável. Ao final, "O Irlandês" é um quebra-cabeça cujas peças Scorsese ofereceu caprichosamente, uma a uma, a nós espectadores. Scorsese finaliza seu filme, mas não a sua história. Nós ficamos incumbidos de um desafio, já que o confronto entre a vida de um homem, com suas realizações e frustrações estão em nossas mãos. O embate psicológico de Frank passa a ser o nosso. Durante o filme fica uma imagem dele ser um homem realizado, afinal até homenagens ele recebeu em vida. Fica a ideia de que Frank foi um homem bem-sucedido. Mas será que foi mesmo? A morte nos é uma certeza, todavia como fica o passado em retrospectiva? As perguntas de Frank são as mesmas que todos nós fazemos, ou provavelmente faremos, quando chegarmos (isso se chegarmos) como ele a velhice. O que foi realmente construído por cada um de nós? O que deixaremos de positivo para humanidade? O que fizemos para os nossos e quais exemplos deixaremos para eles? Será que fomos apenas mais uma peça a perpetuar o jogo injusto do sistema? Sim, para Scorsese tem algo pior do que a própria morte. Fazer o que Frank fez, viver para ser mais uma peça na engrenagem carcomida de uma sociedade violenta e infeliz.

Visto no Estação Net Rio 3, no dia 15/11/2019.
Cotação: 5/5

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