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AZOUGUE NAZARÉ - Direção de Tiago Melo


A resistência alvissareira pela cultura

O cinema pernambucano está sempre a nos pregar peças! Mesmo depois do estrondoso sucesso de público de "Bacurau", nosso novo clássico arrebatador e de "Estou me guardando para quando o carnaval chegar", a belíssima e singela obra de Marcelo Gomes, eis que outra pérola nos chega para nos embasbacar novamente: "Azougue Nazaré", de Tiago Melo. Um primor de filme sob vários aspectos e perspectivas. Procurarei desenvolver algumas delas neste texto.

Antes mesmo de falar do filme, se faz necessário frisar o quanto insensível o mercado exibidor se mostrou em relação a "Azougue Nazaré". Um filme que na segunda semana em cartaz, só está sendo exibido em duas salas, que ficam em extremos geográficos de difícil acesso, O IMS-RJ (Instituto Moreira Salles), no alto da Gávea e no Cine Arte UFF, em Icaraí, na cidade vizinha de Niterói. Cabe salientar que essas duas salas são hoje um oásis no Estado do Rio de Janeiro, graças aos atentos programadores, sempre imbuídos em trazer obras potentes para a grade de programação, se colocando literalmente fora do eixo, não só geográfico como também em conceito programático. Essas duas salas representam sim esperança e resistência no atual panorama cinematográfico, já que a cota de tela para o nosso cinema caminha para se tornar uma precoce peça de museu, o que faz com que o abuso e o poder econômico predominem e deem o tom na ocupação do restante das salas de exibição, onde até o Grupo Estação, famoso por prestigiar o cinema independente, vem cedendo espaço para os chamados blockbusters.
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Mas voltemos para "Azougue Nazaré" e sua importância para o cinema de 2019. A relevância é tamanha quando se pensa que a temática central de sua narrativa é o conflito entre a cultura popular, no caso, a do maracatu rural da Zona da Mata pernambucana com o preocupante crescimento das igrejas neopentecostais pelo Brasil afora. O filme é uma denúncia à violência dessas igrejas aos ritos sagrados populares, muitos deles nascidos de um sincretismo entre as culturas afro-brasileiras, ameríndias e católicas. O diretor Tiago Melo, que em 2016 dirigiu um documentário sobre o papel do sagrado no maracatu rural, que funcionou como material de pesquisa para essa ficção, se posiciona de maneira explícita contra o ataque que as manifestações populares, ricas e agregadoras, vêm sofrendo por parte desses grupos, que para ganhar espaço investem na intolerância contra as tradições.

Um dos elementos fortes de "Azougue Nazaré" é a direção de arte, construída com um cuidado tal para que as cores da tradição se oponham às cores pastéis sem graça dos neopentecostais. O colorido é vinculado à festa, a uma visão alegre e poética da vida em comunidade. Alguns diálogos são ditos como versos e trovas desse costume popular, onde o improviso é uma mola mestra nessa dinâmica de ver o mundo. O engessamento das palavras bíblicas fica evidente e Tiago Melo encaminha seu trabalho para alumiar a religiosidade inerente a esses ritos populares, não expressos de uma forma dogmática, mas sim com vivacidade e profundidade. Há uma relação entre trabalho (canavial), natureza e religiosidade sincrética, com rituais de grande beleza. Incendiar o canavial é simbólico, pois nele está assentado a base cultural dessa comunidade. O ataque a ele é também ao coletivo e é disso que trata o filme, sobre o fim de uma cultura para se imperar a política de carneirinhos e de corpos domesticados pela religião.
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Há uma narrativa fluida, envolvente que trabalha com os contrastes presentes na vida de uma comunidade, onde as famílias se encontram divididas entre a entrega aos rituais de tradição e a influência do evangelho. O pastor do culto é um ex-mestre do maracatu, a tentar amealhar fiéis para o seu projeto evangelizador e careta. O controle dos corpos pela vigilância dos comportamentos dão a tônica de "Azougue Nazaré". Entretanto a resistência vem também pelos corpos e o sexo. A própria aparente submissão da personagem Darlene esconde um desejo secreto e proibido pelo pastor. Já Tita, a mulher do chaveiro, personifica a liberdade sexual e insubmissa, pronta a seguir seus desejos mais latentes, sem censura. Vale destacar o elenco como um todo, mas em especial, Catita (Valmir do Côco, que atuou em Bacurau), sua esposa Darlene (Joana Gatis, já presente em importantes produções pernambucanas e para além delas) e Tita (Mohana Uchôa). Guardem bem esses três nomes, pois fatalmente, em breve, estarão brilhando em outras produções. Esse é o primeiro longa de Mohana Uchôa, mas a sua presença em cena tem muita força e promete muito. Vale ficar de olho.

Tiago Melo, foi produtor executivo de "Aquarius" e "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho. Agora, em "Azougue Nazaré", acontece o inverso, temos a presença de Kléber Mendonça Filho como um dos produtores. Essa visão e prática de comunhão no trabalho possui uma força impressionante. Kleber, o mais prestigiado diretor pernambucano está sempre a apoiar os colegas de profissão, não só em Pernambuco, que fique claro. Essa postura vinda dele, de que cada premiação de nosso cinema muito estimula o todo, não só o seu trabalho, é crucial para que avancemos sempre. Uma liderança se faz assim, de maneira involuntária e assertiva. O cinema é coletivo, mas o ego volta e meia atrapalha tudo e Kleber dignifica muito essa visão de que tem espaço para todos e quantos mais forem protagonistas, mais a área audiovisual brasileira ganha espaço aqui e fora do país.
  
Novamente voltemos à "Azougue Nazaré", apesar de que não saímos efetivamente dele. A resposta cinematográfica de Tiago Melo é contundente, clara, pernambucana ao extremo. Essa é uma cara que o cinema vindo de Pernambuco trouxe e nos acostumou, a de confrontar os temas com absoluta clareza e liberdade. O Mangue Beat instaurou isso, institucionalizou a possibilidade de convívio entre as tradições e o mundo, e como esse gesto fez bem para Pernambuco, e mais, para o Brasil. A ousadia e o discurso direto (não necessariamente a estética no mesmo tom) fez desse cinema uma potência, desde que "Baile Perfumado" aterrizou entre nós, em 1996. E quando "Azougue Nazaré" propõe um desafio de versos por whatsapp essa potência cultural explode na tela. A cultura se mostra afiada e disposta a atravessar os tempos e a modernidade eletrônica: a força do Mangue Beat aflora em toda sua plenitude.           
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O título do filme, com a inclusão da bela palavra azougue (esperteza e ligeireza), muito diz sobre o que o filme quer falar (mais uma vez esse lindo discurso direto pernambucano) e resgatar. "Azougue Nazaré" sublinha o nosso melhor, o poder de improvisar e brincar, de ser catita, de ser espirituoso e se dar o direito de viver no sonho. Assim como em "Bacurau", essa pérola também visita uma cidade pequena do interior, Nazaré, para mostrar o quanto o poder popular, do viver coletivo abarca afetividades, desejos profundos e verdadeiros. Sim, a palavra verdade é sempre relativa, mas quando ela vem agregada de algo que está no DNA de um povo, ligada à sua existência, ela se revitaliza para se transformar em resistência.

Visto no IMS-RJ (Instituto Moreira Salles) no dia 22/11/2019.
Cotação: 4/5

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