
Uma análise do "Coringa" sem o "Coringa"
Por Marco Fialho
Quando uma obra de cinema é produto de uma adaptação literária, dos quadrinhos ou qualquer outra inspiração artística, o primeiro passo para que ela possa lograr é o da subversão, pela simples razão que ela precisa constituir-se como obra própria, como algo em si e não meramente como uma transposição em busca de uma fidelidade a todo o custo. Porém, há que se enxergar nessa nova obra o sentido da inspiração ou da adaptação. Enfim, existe nesse caminho sempre algo de tortuoso e complexo. "Coringa", de Todd Phillips dá conta desse desafio, desse diálogo conflituoso entre o que se faz e o que se espelha. Daí o seu filme se diferenciar drasticamente de todas as outras adaptações da própria DC e Marvel. E esse diferencial primeiro está no aspecto imagético mesmo. Tudo o que vemos em "Coringa" é uma outra maneira de representação do quadrinho, e numa certa ótica o seu apagamento no plano do estético.
Todo esse preâmbulo é importante. Ele situa "Coringa" em uma espécie de contradição do próprio universo do qual deriva e pertence, o das adaptações dos quadrinhos cinematográficas da DC e Marvel. Em "Coringa", o espetáculo em primeiro plano não é mais o primeiro traço a se destacar, pois é justamente isso que ressalta às vistas nos outros filmes dessas franquias: o incômodo artificialismo de produções calcadas no CGI (imagens produzidos por computador) e no chroma key (fundo verde utilizado nas filmagens que serve para introdução posterior de imagens que não estavam presentes no ato da filmagem), onde os maiores afetados são os atores que precisam driblar a ausência do que para mim é o básico do cinema, a mise en scène. Como atuar tendo o vazio verde como cenário?
Isso tudo só é possível porque o que sustenta esse formato de obra e indústria são os aparatos tecnológicos envolvidos na produção da imagem e do som. Todo o resto se torna secundário, inclusive os atores. Não digo aqui os personagens, esses fundamentais e centrais, mas sim os atores mesmos, seu ofício e sua presença como profissionais da representação. Essa diferenciação precisa ser feita, pois ela compõe com a proposta artificialista do processo desses filmes, o que engessa tudo em uma padronização na produção da imagem e do som. Por mais que se invista milhões em tecnologias nas megaproduções, pode se observar que mais importante do que o desenvolvimento do personagem em si, o que mais se destaca é um funcionalismo do ator, uma primazia do emolduramento, protótipos típicos de uma indústria serial, uma peça a mais a mover a engrenagem dessa máquina cinematográfica.
Mas como em qualquer processo industrial, a máquina se humaniza, enquanto o humano se robotiza, leia-se aí os atores. Quando se destacou a atuação dos atores em um filme da Marvel ou DC? Como representar em meio a tanto chroma key e CGI? A única peça viva nesse ponto se fragiliza, se apequena. O ator precisa de maquiagem, figurino e também de objetos de cena e cenário para ser verdadeiro. Talvez essa aproximação com a vivacidade do teatro seja o fator de encanto com o cinema, esse roçar de pele entre essas duas potências artísticas que tanto se diferenciam entre si, descortinadas pela necessidade desse interagir do ator com algo de concretude material, com um contexto que lhe inspire verdade e aponte caminhos, gestos, reações, que o diferencie como um ser vivo e criativo, capaz de entoar uma voz em meio a tantas lápides plantadas por um cenário repleto de espaços rígidos.
Qual seria então o papel do roteiro em meio a todo esse turbilhão entorpecentes ditados pelas maravilhas do exibicionismo técnico e porque não dizer pirotécnico dos efeitos mirabolantes de som e imagem, que na maioria das vezes escondem e disfarçam as carências cada vez mais evidentes na construção dos personagens? O roteiro virou esse "empurrar" a roda para frente, esse veículo de tornar tudo dinâmico e atrativo, a velha reprodução e diluição do manjado mecanismo aristotélico transformado em um desenvolvimento de fórmulas que vem sendo pisadas e repisadas pela indústria do entretenimento nos últimos vinte anos (para ser generoso). Mas está bom, afinal tudo são meras pílulas de diversão gratuita, onde o maior desafio seja comparável a se entrar em uma montanha russa cada vez mais alucinante e desconectante em relação a tudo que está em volta de nós: o mundo. O roteiro como mais um material bruto da engrenagem de uma máquina que fica roboticamente reproduzindo seus protótipos, mas de tal forma e tão repetidamente a ponto de criar um tipo de fenótipo.
Enfim, aqui não é, ainda, a análise do "Coringa", mas sim toda uma reflexão que já existia em mim, mas que ele aflorou violentamente (ótima palavra por sinal em se tratando de "Coringa"). Todavia é sim um introito sobre ele, um "Coringa" sem o "Coringa", algumas colocações sobre um determinado mercado cinematográfico, que nunca é discutido nas resenhas críticas, como se tudo fosse meramente dado e intocável. E como se esse mercado não tivesse comprometido com escolhas estéticas e narrativas que precisam ser questionadas, tanto quanto os filmes em si. Afinal, como podemos entender essa mega indústria, com posicionamento claramente monopolista e que o saudoso Paulo Emílio Salles Gomes colocaria sagazmente como a do ocupante (mesmo entendendo que hoje esse termo precisaria ser atualizado, pois temos hoje também braços nacionais da indústria do ocupante, e que o ocupante de antes agora é multinacional e multicorporativo), sem entender seus traços estéticos, seus formalismos (pois acredito que antes de tudo essa indústria seja por demais formalista e esteticamente conservadora) industrializantes e serialistas. Todos esses fenótipos expostos aqui estão confrontados belamente em "Coringa".
A primazia do roteiro e da mise en scène (incluindo aí o trabalho impactante de Joaquim) sem dúvida assinala um ponto a ser ressaltado, que o cinema industrial em larga escala pode ser humanizado, de carne e osso, e por isso mesmo reflexivo e potente. Essas devem ter sido as motivações para a Palma de Ouro em Cannes do filme. Entretanto aqui faz-se um adendo. A beleza desse filme não pode ser utilizada para ampliação do monopólio do mercado pelas grandes corporações do cinema e isso traz uma contradição na relação dessa obra primorosa com o mercado. A voz única na distribuição precisa ser brecada urgentemente. Os poucos circuitos dedicados ao filme independente precisam garantir que outras "vozes", e línguas, cheguem até nós, e a qualidade e o grande prêmio de um filme como "Coringa", não podem ser utilizados para ratificar uma relação econômica desigual e acachapante.
Escrito em 12/10/2019.
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