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CORINGA - Direção de Todd Phillips - PARTE 2 - a crítica


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Entre o riso e o choro: a violência desnudando o mundo das aparências

Por Marco Fialho

"Só espero que a minha morte faça mais centavos do que a minha vida"
                         Arthur "Coringa" Fleck


Um primeiro fato deve ser considerado de cara: "Coringa" não é exatamente sobre o personagem Coringa. Coringa é o veículo, isto é, o meio pelo qual habilmente Todd Phillips realiza um estudo sobre os mecanismos de exclusão de uma sociedade profundamente calcada na desigualdade. E como a violência se revela o motor de suas engrenagens de poder. Não à toa, foi a violência um dos aspectos mais comentados e reiterados pelos críticos mais ruidosos do filme. A violência em "Coringa" é o simbólico, é o sintoma, é o fato, o cru, não o cerne da coisa. Não compreender isso é patinar e cair na superfície, sem realmente atingir as contraditórias entranhas propostas pela narrativa do diretor.

A violência é uma armadilha, nada mais. Há a construção de uma tensão cena a cena, um copo que vai sendo alimentado e o seu vazamento depende do quanto nele se deposita de água. A ambientação sonora em "Joker" funciona fazendo uma regência na composição narrativa do filme, ela é progressivamente dramática e incisiva, marca cada novo acentuar de sua curva dramática. Ela colabora com precisão no controle e no envolvimento do espectador. Um trabalho cuidadoso da jovem violoncelista Hildur Guonadóttir, que recentemente assinou uma trilha incrível para "Chegada" (2016), do canadense Denis Villeneuve.
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O terreno no qual Todd Phillips trabalha cena a cena é o do entre viver no sonho permanentemente vendido pelo sistema e a dura realidade das ruas e da vida cotidiana. A direção de produção de Mark Friedberg realça com eficiência essa ideia do filme ao salientar esses contrastes físicos. As paredes mal emassadas, o cenário envelhecido, o elevador mal-ajambrado, o apartamento sem-graça e sem vida de Arthur reforçam a sua sensação de fracasso. A fotografia assentada no azul e no amarelo evidencia a dubiedade dessa vida dividida entre o artifício da imaginação e a penosa realidade. São muitas cenas que essas duas cores estão ali delimitando os espaços e o sentimento de esperança em meio à degradação. A vida miserável da mãe e do filho contrasta na maneira pela qual o chama: Feliz. Arthur, em certa hora diz: "é muito difícil tentar ser feliz o tempo todo".

Precisamos ainda falar da violência e o quanto ela necessita ser contextualizada e redimensionada em relação ao objeto de estudo que Todd Phillips enfoca. A potência desse estudo está centrada em um único personagem, mas evidente que vai além dele, a extrapola consideravelmente. Mas onde se esconde essa potência e o que a revela? Seria no social, no psicologismo da construção do personagem? Ou seria em seu poder imagético? Não creio em nada disso, prefiro arriscar em dizer que o mote para o filme está relacionado no entendimento político de como se estrutura a própria sociedade de Gotham City (uma visível Nova Iorque cosmopolita, com seus icônicos táxis amarelos e prédios inconfundíveis). O que "Coringa" escancara é o jogo político desleal regido sobretudo pelo mundo das aparências. Sim, mundo das aparências! Aí está a chave de "Joker", não casualmente tudo está centrado no rosto desse joker. 
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É principalmente no nosso rosto que expomos cotidianamente nossas máscaras e que escamoteamos estratégias e artifícios pela nossa sobrevivência. Mas a máscara do "Coringa" não aponta só um mero rosto, ela encarna as múltiplas contradições de uma sociedade construída pelo jogo das aparências. Nesse universo adverso, as máscaras as serem vestidas podem ser inúmeras. Porém, o que a obra "Coringa" desmascara é o teatro social contemporâneo, o gérmen da falácia que resultaram nas recentes fake news. Ela despedaça o sustentáculo de uma sociedade alicerçada na mentira, nas aparências e nas máscaras. E a eclosão da violência é o que põe em xeque esse mundo fake movido pelas aparências. A vitória de Trump nos States e de Bolsonaro aqui no Brasil é a oficialização de que a fabricação desse tecido social está impregnada de um mundo regido pela aparência e pela mentira. A impessoalidade do sistema facilita tudo. Quem são nossos vizinhos? Sabemos mais do mundo pelas mídias do que pela nossa vivência.

Portanto, vale a pergunta de qual é o lugar onde o sistema capitalista vende a sua ilusão de bem-estar? Não seriam pelas mídias (TV no passado e internet hoje em dia)? Coringa, isto é, Arthur Fleck, descobriu isso, não pelas vias analíticas, mas ao sentir na própria pele a exposição de sua miséria humana, de ser mais uma bucha a ser queimada para ratificar o sucesso de uns poucos e a tragédia de milhões. Por isso "Coringa" também é sobre todos aqueles que acreditam no sonho vendido e que o bilhete premiado é para todos. Boa parte de "Coringa" se passa na imaginação de Arthur, no apresentador que poderia ser seu pai e na bonita vizinha que podia ser sua esposa. Como então viver em um mundo que vende algo que não pode ser comprado por todos? "Coringa" se mostra então ser a contradição do sistema, justamente por acreditar nele e quando decepcionado resolve implodi-lo por dentro.

Ainda falando do rosto, essa importante matéria-prima desse "Coringa", não podemos deixar de mencionar a função do riso e gostaria de fazê-lo para além da análise psicológica, e dentro de uma visão que englobe efetivamente seu histórico de vida. Por isso é necessário falar aqui de Thomas Wayne, o mega empresário e poderoso homem de Gotham City. Ele é o típico manipulador, um caso semelhante ao de Donald Trump, um arrivista sedento por poder, inclusive por poder político (prefeitura). O passado da mãe de Arthur é o mesmo de tantas outras na história, inclusive a brasileira, em que as escravas eram estupradas pelos seus senhores de engenho. Coringa (aqui já não falo mais de Arthur) é muito isso, resultado de uma perversão social de uma anomalia historicamente homologada pelos donos do poder. O uso, o abuso, o descarte, a mentira e a adulteração de documentos oficiais, são utilizados para manter o tal mundo que embora marcado pelos abismos sociais é amparado pelas aparências burguesas.   
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Essas diferenças de tratamento entre as classes ocorrem no decorrer de todo o filme. A dura vida no emprego, as constantes humilhações, a perda dos remédios pelo corte governamental do serviço social, onde Arthur fazia acompanhamento psicanalítico. Está também no discurso de ódio escrachado de Wayne aos mais pobres e no desprezo à mãe de Arthur. Enquanto isso a mídia vende a imagem salvadora de Wayne e zomba de um vídeo de Arthur. São dois lados da mesma moeda, um peso e duas medidas. Aos ricos tudo, aos pobres nada, só o lixo. O que lhe sobra então é um incontrolável som doentio, algo que transita entre o riso e o choro. Esse som sintetiza os abusos sofridos desde à infância e ainda seus fracassos na vida adulta. Arthur é um condenado que sem os seus remédios, lhe resta apenas o desejo de vingança. As diversas pessoas com máscaras bizarras de palhaço revela o quanto a dor de Arthur "Coringa" Fleck não pertence só a ele. Ele é o simbólico de uma relação violenta e perversa ditada pelos poderosos. Entretanto todos almejam ser feliz. Todd Phillips habilmente resgata "Smiles", a bela e triste canção de Chaplin, que é entoada para também pisar e repisar a natureza dupla e contraditória do palhaço. Chaplin também aparece no cinema, numa cena de "Tempos Modernos", em que a burguesia ri de se escangalhar de suas palhaçadas críticas. Os pobres, a quem interessava o filme, não estavam presentes, apenas os magnatas, a quem inclusive a obra critica. São as ironias que o sistema capitalista se permite em sua obscena engenharia para manter a aparência democrática.

E o que falar do trabalho genial de um ator chamado Joaquim Phoenix? Existe em sua atuação algo que se estabelece a partir de um corpo destroçado pelo sistema. Sua magreza faz parte de sua composição, mas não é só isso. Tem uma consciência de cada gesto emitido, sabe construir e imprimir a tensão do filme a cada nova cena. Trabalha na seara do lúdico e da desesperança, anda nessa corda-bamba sabedor que ela lhe está esticada. Há também um quê de expressionismo na maneira de colocar o seu rosto em cena. Aproveita bem as tomadas em close, de modo a valorizar cada intenção que quer passar. Um show de experiência e ousadia interpretativa. Salientando ainda aquele "sorriso" incontrolável, aquela angústia transmitida com a precisão típica de um ator que é cônscio do que deve fazer quando se está em cena.
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Entretanto é plenamente justificável que o ápice do filme aconteça em um programa de auditório sensacionalista. É ali que o seu show é possível e ele precisa estar à altura do que o meio escolhido solicita. Como bem diz Coringa, não mais Arthur, para o apresentador, público e os manda-chuvas da televisão, "vocês decidem o que é certo e errado, o que é, ou não, engraçado". Vale lembrar que a mídia televisiva no pós-guerra foi a maior incentivadora do mundo das aparências burguesas, foi o locus da barbárie capitalista. O mesmo ambiente onde propagandas que ditam modismos de como se vestir e portar se coadunam contraditoriamente com as práticas mais bizarras possíveis dos programas de auditório. Walter Benjamin dizia que a civilização traz em si o gérmen da barbárie, e esse espírito destruidor está presente como aberração generalizada na própria composição do sistema capitalista. Se a mentira é a válvula propulsora dessa engrenagem, "mandem entrar os palhaços", como bem diz a canção "Send in the clowns", na voz certeira do eterno Frank Sinatra. E caso você não goste dessa ideia, dê uma olhada de relance para um espelho e tente se achar lá na imagem refletida. Você pode ser mais um Coringa e não saber.

Visto no dia 09/10/2019, Kinoplex Tijuca 4.
Cotação: 4 e meio/5

Leia também:

https://cinefialho.blogspot.com/2019/10/coringa-direcao-todd-phillips-parte-1.html?m=1

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