
O duplo e o múltiplo em Domingos de Oliveira
Por Marco Fialho
Pode-se dizer que "Aconteceu na quarta-feira" é mais um típico filme de Domingos de Oliveira. A verdade é que em sua derradeira obra, ele reafirmou coerentemente tudo que realizou no cinema em sua carreira, em especial em seus últimos filmes. Por isso agora, mais uma vez pode-se amar ou odiá-lo, como sempre acontece.
"Aconteceu na quarta-feira" é em si uma grande ode ao teatro, ao jogo da vida e do cinema. Uma brincadeira com todas as artes que imitam a vida e seus sortilégios. Uma obra na qual sequer precisava dos créditos de direção, porque o estilo textual de Domingos está impresso em cada cena, em cada palavra ali proferida. Visto após a sua recente morte é como um ato de saudade, por saber que não ouviremos aquela voz e os pensamentos vigorosos em relação ao ato de viver.

A presença da sua musa Priscilla Rozenbaum e de seu alter ego Ricardo Kosovski (visivelmente esforçando-se para aproximar sua verve a de Domingos) reafirmam ainda mais o fato de "Aconteceu na quarta-feira" ser uma obra de Domingos de Oliveira. Ambos estão com o comprometimento habitual, como se representassem sempre em homenagem ao mestre.
O teatro entra no filme como metalinguagem, o duplo que ele representa perante à vida. A peça dentro do filme permite a Domingos destilar o seu lado jocoso de sempre, mas o que mais surpreende é a opção em incorporar uma trama rodrigueana, em que o ciúme e a farsa cômica permeiam a estrutura narrativa, estabelecendo um jogo entre o dramático e o cômico, pois em Domingos essas duas formas de representação sempre caminham juntas e inseparáveis.

A arte e a vida são assim, para ele, eivadas por algo de burlesco que é inerente à própria natureza do ser humano. Isso não traz nenhuma novidade ao escopo de seu trabalho, de certo, todavia assistir a expressão de um artista no auge de sua maturidade e inteligência não deixa de ser um privilégio para poucos. Agora, resta apenas assistir sua obra e refletir o seu real alcance e acredito que ele não seja pouco, já que a originalidade de Domingos de Oliveira transpira na epiderme de cada uma de suas obras-de-arte.
Reduzi-lo a uma espécie de Woody Allen brasileiro, como muitos gostam de fazer, chega a ser de um reducionismo precário, pensando sobretudo em como sua obra se relaciona com o universo denso das artes. Sua paixão pela música, teatro, cinema, dança e tantas outras manifestações artísticas atestam isso. Em "Aconteceu na quarta-feira", por exemplo, Mozart e Wagner entram com força inigualável e potente como quase síntese de seus personagens, como mais um duplo a se manifestar. Por isso tudo, Domingos será sempre lembrado não como um artista duplo, mas sim como um artista de múltiplas possibilidades e belezas.
Visto no Estação Net Botafogo 2, no dia 04/10/2019.
Cotação 3 e meio/5
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