A periferia como protagonista de si mesma
Por Marco Fialho
Quem já acompanha o trabalho realizado pelo coletivo e produtora mineira Filmes de plástico não se assustou com a força cinematográfica existente em "No coração do mundo", apenas constatou o quanto seus filmes reafirmam a "marca" desse grupo de artistas de Contagem. Mas o bom desse coletivo é que ele não é excludente e nem tão pouco fechado em si mesmo. A prova disso é a inserção em sua equipe de artistas como Grace Passô, Leo Pyrata e a galera do coletivo alumbramento do Ceará, aqui representado por Guto Parente (diretor do recente e surpreendente "Inferninho", em parceria com Pedro Diógenes). Essa deve ser a vantagem de pensar as artes a partir de um coletivo, a ideia de que agregar para somar é um caminho frutífero para atividades como o cinema, ofício que por sua natureza envolve sempre muitas pessoas. A prova disso é que o cineasta mais reconhecido da Filmes de plástico, André Novaes Oliveira, aparece nos créditos como Assistente de direção.
Visto como criação narrativa, "No coração do mundo" pode ser dividido em momentos. Primeiro como um típico filme da Filmes de plástico, isto é, um drama eminentemente sugado do cotidiano da cidade de Contagem, para depois, em um segundo momento, descambar para uma trama tensa de suspense. O interessante aqui é o quanto a inserção desse suspense acresce ao universo dos filmes típicos da Filmes de plástico, o quanto ele consegue aprofundar questões sociais vindas desse cotidiano já muito trabalhado por esse coletivo. Ao meu ver o acréscimo é imenso, pois nos fazem pensar nas contradições que habitam nessas imensas populações que vivem na periferia dos grandes centros e capitais e a humanizam ainda mais, pois é o perigo (perigo de perder a vida) o próprio alicerce dessas vidas que não escolheram seu endereço de nascimento.
Quem nasce na periferia está destinado a viver para sempre nela? Essa é uma questão que surge em "No coração do mundo". A polissemia da palavra periférico, aqui muito pode ajudar já que o seu sentido abrange diversas áreas como a geometria, a informática, a botânica e a geopolítica brasileira e mundial. Entretanto, em todos os casos ela define-se como algo que está a margem de algo central, ou melhor, a periferia em si é delimitada pelo outro, não por si mesma. Incito essa discussão para justamente propor questionamentos acerca da própria maneira de pensar o cinema a partir do viés da Filmes de plástico, e creio que nesse "No coração do mundo" isso fica mais latente ainda do que em outros filmes desse coletivo. Se pensarmos que quando falamos em estar periférico ou ser periférico estamos nos referindo ao que é vir a ser, ou não, protagonista. Aqui a evidência é mais latente do que nunca, pois a periferia aqui é o centro, e que nesse, e em outros filmes desse coletivo (e aí está a sua força) e por esses seres que estão postos na periferia do capital (nota-se não apenas da capital, mas sim para além do espaço físico, já que ele é só um condicionante de algo maior) no centro de sua cinematografia. E essa inversão de perspectiva só pode ser realizada pela arte, porque ela subverte a natureza em si da coisa periférica. A realidade precisa ser reconstruída pelo cinema, que atua diretamente sobre a consciência do espectador. Talvez não à toa, uma típica senhora burguesa, sentada ao meu lado no cinema, se levantou dizendo que tudo aquilo era de baixo nível e que ela se recusava a ver aquilo. O que muito provavelmente a tenha chocado fosse o ponto de vista na qual a história estava sendo contada e não a história em si. Não se ver ali, deve ter sido impactante para ela, tão acostumada em ver os ricos no protagonismo do mundo.
Em "No coração do mundo" os ricos não aparecem, são apenas vultos, fantasmas burgueses que de tanto invisibilizar os que oprimem ficou invisível também para eles, tamanha a distância que estabeleceram nessas relações sociais. Essa distância é consubstanciada na própria organização do espaço social, com uma divisão rígida entre pobres e ricos. O condomínio e a favela são as evidências disso. No filme, o condomínio torna-se alvo de um plano de enriquecimento de Selma, Marcos e Ana. Mas o sistema de segurança do condomínio a ser assaltado é quase perfeito, ele só tem sete minutos de ponto cego em um determinado lugar. Há nessa informação um indício precioso sobre as relações sociais desiguais no Brasil. Para furar esse sistema é necessário sagacidade e ousadia. Para usufruir de alguma riqueza, privilégio dos ricos, tem que ser assim, no risco extremo.
Por isso, afirmamos que a periferia é a maior protagonista de "No coração do mundo", suas dificuldades diárias para sobreviver, seus empregos duplos, como o caso da personagem vivida por Bárbara Colen, que de dia é cabeleireira e à noite quer trabalhar como motorista de uber, para tentar levar uma vida menos aviltante. O filme trabalha com personagens que vivem suas vidas sempre no limite, em um fio tênue entre o viver e o sobreviver, entre o lícito e o ilícito. Marcos (Léo Pyrata) e Selma (Grace Passô) são personagens típicos dessa encruzilhada, trabalham tirando fotos e as vendendo nas escolas, ganham uma merreca, mas pensam em paralelo em um plano para um grande golpe.
"No coração do mundo" ocupa um importante lugar não só na cinematografia brasileira, mas também por ganhar espaço no mercado exibidor, cada vez mais arredio a trazer conteúdos mais ousados, que mexem com a visão corriqueira acerca do que é a periferia e como ela vive. Subverter o consenso social é preciso e a boa surpresa é que ela vem construída por artistas vindos da própria periferia. Não sei o que pode ser mais poderoso do que isso.
Visto no Estação Net Botafogo 2, no dia 10/08/2019.
Cotação: 4/5
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