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O BAR DA LUVA DOURADA - Direção de Fatih Akin

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Os estorvos da sociedade em nossa mesa de jantar

Fatih Akin não pode ser enquadrado exatamente como um diretor que foge de temas polêmicos em seus filmes. É difícil ficar indiferente às obras desse alemão de origem turca, basta ver seu trabalho anterior (Em Pedaços, de 2017). Mas agora em "O bar da luva dourada" essa sensação de incômodo é mais latente ainda. Entretanto, antes de se deixar levar por uma análise apenas da superfície do filme, que contem cenas de violência explícita, seria mais adequado vê-lo como uma metáfora de uma sociedade decadente que se auto-implode.

Como toda metáfora, "O bar da luva dourada" opta pelo exagero e por um recorte específico, uma parte que consiga expressar o todo, um microcosmos onde encontramos sinais evidentes do que se quer falar. A vida de Fritz Honka é bem o caso. Ele é com certeza um serial killer e logo na primeira cena já sabemos disso, mas Fatih Akin parece querer conhecê-lo, de verdade, e sem julgá-lo, parece querer enxergá-lo em sua complexidade, não por amor a ele, mas porque quer entender melhor a sociedade doente na qual ele está inserido, e da qual esse ser abjeto advém.


Em nenhum momento Fatih Akin nos diz que seu filme é baseado em uma história verídica, ocorrida nos anos 1970, apenas nos créditos ficamos sabendo disso, quando o diretor nos revela parte das imagens reais, extraídas da casa do Sr. Honka, das investigações policiais e dos jornais da época. A ficção de Akin então não é propriamente a realista. O real é apenas o ponto de partida para a sua viagem metafórica.

E sob a ótica do cinema, o que se pode dizer desse "O bar da luva dourada"? Fatih Akin mostra um domínio pleno dos códigos cinematográficos e isso ajuda a distinguir sua obra de um pastiche qualquer sobre o mundo dos serial killers. Os enquadramentos são quase todos acadêmicos, a câmera não está ali para se auto protagonizar, ela está sim a serviço da mise-en-scène caprichada do diretor, que se mostra cônscio de todas as suas decisões. Não há uma cena fora do lugar ou em excesso. Nota-se que tudo é filmado com uma crueza absurda, pois Fatih Akin procura não cortar dentro da cena, o que ajuda a ressaltar a violência dos atos do Sr. Honka. O cuidado da reconstituição dos ambientes e objetos de cena são de um detalhismo que muito ajuda ao ator Jonas Dassler na construção do seu macabro personagem. Toda a violência que o filme traz se justifica por Akin ter escolhido narrar a sua história a partir do próprio Sr. Honka. É da vida e da mente doentia dele que vemos tudo acontecer. O tempo todo tudo parece ruir, a decadência domina a cena, todos os personagens são renegados, que frequentam o bar mais feio, mais sujo, um típico inferninho com música de juke box, onde os párias de toda a ordem predominam e ali lançam sua alquebrada luz.
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Um dos grandes destaques de "O bar da luva dourada" é a fotografia de Rainer Klausmann, parceiro contumaz de Akin. O uso do vermelho não se dá apenas pelo sangue, ele está sempre presente, como uma lembrança inconsciente de Sr. Honka. Fatih Akin e Klausmann conseguem criar uma atmosfera onde as cores neutras e sem apelo visual salientam a morbidez dos ambientes e do personagem, sem se esquecerem do devido contraste em alguns momentos com as cores quentes.

O trabalho de Jonas Dassler como Sr. Honka é de um primor. O jovem ator de 23 anos faz uma caracterização completa, demonstra uma maturidade cênica impressionante, com atenção aos detalhes físicos, de gestos e atitudes típicos dos grandes atores. Sua criação cresce com todo um trabalho de maquiagem e figurino que muito dizem sobre sua psicopatia. Sua violência às mulheres é sempre aterrorizante e implacável, mas Akin reserva a suas personagens femininas uma força fora de série. Todas possuem uma combatividade e uma afirmatividade de quem encara todos os dias as agruras do machismo encruado, por isso elas não são meras vítimas, pois trazem um vigor de quem luta cotidianamente contra as agressões masculinas.         


Mas não podemos deixar de mencionar outros personagens, em especial os que perfilam no simbólico Bar Luva dourada. São seres estranhos desse mundo, assim como o Sr. Honka. Temos o Sr. Max Gim (o maior bebedor de gim do bar), o excêntrico soldado Nobert (senhor de um dogmatismo todo próprio) e o insólito faz tudo chamado Ânus. Quanto as senhoras, todas ex-prostitutas (algumas parecem ainda na ativa, ou tentam) são inteiramente críveis, mulheres do mundo, gastas pelo tempo e pela vida dura, carentes de amor e dinheiro, dispostas a tudo para sobreviver. Não são privilegiadas pelo passado rico, são herdeiras ainda da Segunda Guerra Mundial e da humilhação. Fatih Akin demonstra um imenso afeto para com todas elas e isso é muito cristalino. Destaque especial para a Sra. Gerda que traz à história um elemento emblemático, a da sua filha Rosi, jovem açougueira descrita como gordinha pela mãe e que mexe com o imaginário do Sr. Honka, que em um gesto de transferência a imagina como sendo uma outra personagem, a menina Petra, ainda em idade escolar. Petra e seu amigo Willi são representantes da classe média no enredo (eles são aparentemente o atípico desse universo sombrio), ambos seduzidos pelo subterrâneo, pelo submundo que o Luva Dourada significava, a atração pelo repugnante e o proibido. Willi diz para Petra: "pessoas normais também entram no Luva dourada". A sedução pelo desconhecido, e até pelo lugar apontado como degradante, revela muito sobre esses personagens, mas também sobre nós humanos, que somos muito mais complexos do que imaginamos.

A direção de arte nos dá permanentemente a sensação sobre a natureza das pessoas e seus ambientes. Temos a perfeita ideia do mal cheiro vindo tanto do Sr. Honka quanto de sua casa. Os corpos desfigurados e retalhados guardados em sua casa são simbólicos da podridão desse mundo onde a sujeira existe e está sempre escondida. A violência é a sua parte aparente, todavia ela é o sintoma da doença coletiva. Um mundo onde o sujo e a podridão estão sempre longe de nós, está no outro, nunca em nós. O nosso protagonista, o Sr. Honka, deve ser analisado com esmero. Sua personalidade psicopata é agravada por defeitos físicos (seu nariz deformado) e pela sua aversão ao banho (logo visto pelo seu cabelo seboso). Suas psicopatias se solidificaram com o tempo, onde diversos traumas pessoais só fizeram acentuá-las, como sua impotência sexual e seu incurável alcoolismo. As mulheres, até as mais acabadas pela vida e tempo, o achavam dotado de uma feiura incontestável, sem contar a sua franca dificuldade em arranjar amigos. A violência era a sua forma de expressão maior. Os seus empregos eram os que não precisavam de maiores qualificações, como o de vigia noturno, onde seu sentimento de solidão aumentava mais ainda. É um personagem nebuloso sim, entretanto com nuances. Ver apenas a camada da superfície pode apenas nos levar ao asco e ao afastamento por entender esse outro, mesmo que ele se mostre ignóbil e asqueroso.
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Se Fatih Akin fala sempre em seus filmes sobre violência e o quanto a intolerância a propicia, em "O bar da luva dourada" isso é expandido para a vida de um serial killer, e ele o faz diferente de diretores que exaltam o explícito do violento, com sangue jorrando para fora das telas. Ele o faz de maneira seca, esbarrando em alguns momentos em um humor constrangedor para o público. Mesmo quando parecemos ignorar, as desigualdades sociais estão ao nosso lado, a família grega vizinha do Sr. Honka é que o diga. Não precisamos procurar os excrementos alheios, eles vêm até nós, inclusive em nossa bela mesa de jantar. Os destroços e as sujeiras inerentes à sociedade pertencem ao coletivo e de uma maneira, ou de outra, ela chegam até nós. E Fatih Akin bem sabe disso, pois nos oferece como refeição.                                                         
Visto no Estação Net Rio 2, no dia 19/07/2019.
Cotação: 4/5



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