
A falsa imparcialidade do sistema X a parcialidade consciente de Moretti
Por Marco Fialho
Lá pela metade de "Santiago, Itália", o diretor Nanni Moretti aparece como entrevistador de um militar chileno preso devido à participação dele na tortura durante o período ditatorial do governo militar do presidente Augusto Pinochet (1973-1990). O militar em questão afirma que aceitou dar a entrevista porque lhe informaram que tudo ali transcorreria de forma imparcial. De pronto, o diretor Moretti o interrompe para dizer que ele não era nada imparcial, o que significava dizer que seu filme tão pouco também o era.
Essa postura de Moretti como diretor pode ser apontada como a síntese desse apaixonado filme italiano inteiramente voltado para a discussão do doloroso e traumático processo histórico chileno provocado a partir da queda do Presidente Salvador Allende (1970-73), eleito democraticamente e derrubado por uma junta militar em 11 de setembro de 1973. A força desse "Santiago, Itália" está na qualidade de sua pesquisa e na força de sua edição, que impõe à obra um ritmo perfeito e envolvente. Não há em sua proposta nada de inovador enquanto discurso fílmico, sua forma é para lá de convencional, com entrevistados falando para uma câmera fixa sobre suas vidas perpassadas pelos contundentes acontecimentos históricos chilenos vividos em pleno anos 1970.

Cada plano pensado e realizado por Moretti vem encharcado do mais absoluto sentido de justiça e de reparação histórica. Em nome das evidências das informações contidas nos depoimentos, o diretor constrói seu filme respeitando a ordem cronológica dos fatos, o que acentua drasticamente a contundência de seu resultado final. O que poderia ser um problema torna-se na mão do diretor um grande acerto, pois a didática da forma permite uma sucessão de imagens e depoimentos dentro de uma divisão temporal essencial para a clareza do todo.
Tudo começa com o Governo Allende, sua visão coletivista e popular e o quanto que isso incomoda a elite chilena, sobretudo os empresários que boicotam sistematicamente a visão social do governo. A adesão dos militares e dos EUA foram fundamentais, para o efetivo golpe de estado desferido por essas forças retrógradas, que iniciam suas ações violentas assassinando o presidente eleito democraticamente. A repressão é imediatamente implantada, assim como as prisões arbitrárias, a tortura e os assassinatos a quem se opusesse ao novo regime ditatorial. Logo, algumas embaixadas ficam abarrotadas de futuros exilados políticos, perseguidos pelo aparato repressor de Pinochet. O maior contingente de opositores procura a embaixada italiana, o que justifica a própria produção do filme, onde os personagens em sua maioria falam na língua do país que os adotou como filhos.
"Santiago, Itália" possui uma pesquisa de imagem de arquivo muito bem feita. Moretti as insere com precisão e nos momentos apropriados, o que faz com que seu documentário adquira uma potência devastadora. Os depoimentos atuais de dois militares que ainda hoje apoiam as ações do Governo Pinochet são encaixadas de forma a evidenciar as contradições e as falsidades de seus discursos políticos. Moretti se aproveita de momentos onde os personagens são tomados pela emoção ao recordarem suas participações como membros do Partido Socialista ou como simples apoiadores durante o governo de Salvador Allende. O apoio dos italianos é relacionado com a convicta luta antifascista recente, lembrando que o regime de Mussolini tinha sido derrotado por volta de 30 anos antes do assassinato de Allende no Chile. Esse frescor muito colaborou para que os italianos se solidarizassem com os exilados políticos vindos do Chile.

Claro que durante os 80 minutos de "Santiago, Itália" não paramos de pensar no Brasil, tanto no de ontem (1964-85) quanto no de hoje. Em ambos os casos fomos, e ainda somos, assombrados por governos dominados pelos militares e altamente alinhados com governos retrógrados dos EUA. Chega a ser assustador mesmo fazer esse paralelo, mas ele é inevitável, em especial quando vemos que os pretextos para a implantação de governos reacionários e autoritários estão relacionados historicamente com crises econômicas forjadas por empresários (no caso chileno, uma fictícia crise de abastecimento), por mentiras diárias dos grandes órgãos de imprensa, e mais do que tudo, por um suposto perigo esquerdizante (denominado como comunista mesmo) de um governo que propõe medidas sociais populares e inclusivas.
Como bem diz um personagem no final do filme vivemos um momento de vitória do consumismo e do individualismo. Mas sempre há tempo para revertermos essa situação e o cinema pode ser uma importante centelha nesse processo de despertar coletivo. Filmes como "Santiago, Itália" mergulham no passado e nos sinalizam um futuro de esperança. Ele parece nos dizer que não estamos sós e ainda não somos uma ilha. Quando ouvimos a voz de Moretti conduzindo tudo com clareza e fazendo perguntas que nos representam, ficamos com uma certeza de que existe sim uma luz ao final do longo túnel escuro que hoje atravessamos.
Visto no Estação Net Rio 2, em 21/06/2019.
Cotação: 4/5
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