Por Marco Fialho
Por mais que haja, lógico, algo de fabular na opção dramatúrgica de autoficção, vê-se claramente um Almodóvar no personagem delicadamente construído pór Antonio Banderas (não me recordo de outro papel dele mais expressivo), o que lhe valeu o prêmio de melhor ator no recente Festival de Cannes. O que mais chama atenção no trabalho de Banderas é uma leveza de alma, o quanto ele consegue imprimir em Salvador um misto de respeito, veneração, dívida pessoal e agradecimento por tudo que Almodóvar fez por ele e pelo cinema. Destaque também para o carisma de Asier Flores, ator mirim extraordinário, que faz Salvador menino.

Desde o seu último trabalho, "Julieta", que Almodóvar não nos surpreende mais. Tem dado sinais de que seus arroubos melodramáticos estão mais contidos. Há uma visível tendência à interiorização nos seus últimos protagonistas e em "Dor e glória" isso fica mais evidente ainda, quando pensamos que realiza seu filme mais pessoal, baseado em fatos ocorridos na sua vida, em especial na sua infância. De fato, "A pele que habito" foi seu último filme impactante, o que já se vai quase dez anos, visto que seu lançamento data de 2011. Da mesma forma com que Almodóvar cambiou da comédia rasgada para o melodrama a partir especialmente de "A flor de meu segredo" (1995) e "Carne Trêmula" (1997), será preciso aguardar suas próximas produções para podermos confirmar sua nova mudança estilística.
Não que em "Dor e glória" não se veja os vestígios do antigo Almodóvar, eles estão lá sim, apesar de abrandados e suavizados pela própria construção dos personagens. O diretor não só suaviza como também adoça algumas passagens e situações da trama, mas seus diálogos de construção perfeita estão lá a tornear sua mise-en-scène ainda impregnada pelas cores fortes, em especial o poderoso contraste visual entre o vermelho e o verde. Mas a falta de contundência dos personagens de "Dor e glória" talvez espelhem o próprio amadurecimento de Almodóvar.
A partir de "Dor e glória" talvez dê para pensar o quanto seus personagens femininos sempre foram mais expressivos e a chave para a força de seu cinema. Salvador simboliza bem os protagonistas masculinos em Almodóvar. No máximo, em seus filmes os homens são fagulhas, já a energia sexual pulsante sempre esteve com as mulheres, assim como a força vital humana de seus personagens. A grande personagem feminina em "Dor e glória" é a da sua mãe, e isso surpreendentemente parece impedir o aparecimento de um fogo sexual feminino, tão comum nas obras do diretor. Há uma construção quase asséptica da personagem da mãe, com uma Penélope Cruz mais contida do que o habitual em sua interpretação. Salvador é um personagem da racionalização, que mesmo após adentrar no mundo viciante da heroína procura um médico para se tratar e se livrar do vício. Almodóvar mostra então o envelhecimento não só de um personagem, mas o seu próprio enquanto encenador, já intrinsecamente permeado pela maturidade e dominado pela razão tanto como artista quanto como ser humano.
"Dor e glória" pode ser visto como uma metáfora do envelhecimento, não só físico de Almodóvar, mas também do próprio esgotamento artístico de quem encara seu passado de superação econômica e de valoração intelectual como um mero mergulho narcisístico. O presente pode ser esse manancial de dores a brotar incessantemente (inclusive a sequência do inventário de dores é um primor) e o simples ato de olhar para trás pode ser um alento, além de uma necessidade de auto-afirmação e de auto-estima. Que Almodóvar sempre trouxe para seus filmes seu lado ególatra e personalista não podemos negar, e tão pouco reclamar, já que sua genialidade se expressou sempre com potência a partir desse dispositivo.

Sob esse novo aspecto, o de um Almodóvar mais centrado e maduro, surge então esse "Dor e glória". O que o mais célebre diretor espanhol nos entrega é a sua obra mais poética, e quando dissemos isso, queremos dizer que ele se afasta mais, não por completo ainda, de sua matriz artística calcada no exagero estético e narrativo tipicamente sustentado na comédia e no melodrama (arte narrativa que domina como poucos). Tudo leva a crer que estamos diante da afirmação de uma nova fase (apesar de ser prematuro ainda de se fazer tal afirmação) do ditetor, ou de uma nova tendência, mais serena, reflexiva e introspectiva. Se o ser humano Almodóvar transformou-se com a idade, tudo indica que o seu cinema passará também por mudanças que podem ser cada vez mais visíveis para o público. E "Dor e glória" pode ser apenas um novo indício dessas mudanças.
Visto no Estação Net Botafogo 1, no dia 15/06/2019.
Cotação: 3 e meio/5.
Marquinho, fiquei muito comovido com Dor e Glória. As cores do Almodóvar ainda estão lá, a intensidade das emoções e do sofrimento humano também. Mas tudo já é mais austero - e é bonito isso. Ainda assim, o tempo todo eu lembrava de A Lei do Desejo. Pra mim, no fundo, é o mesmo cineasta gay (nos dois casos, o Bandeiras lindíssimo e numa performance inesquecível) em seu apartamento, que é também seu próprio mundo. O que é interessante é que agora a roupagem é declaradamente confessional. O pueblo aparece como nunca num filme do Almodóvar. Claro, a gente já sabia das vizinhas, dos ventos misteriosos que trazer morte etc. Esse mundo intimo já estava presente em outros filmes. Em Dor e Glória, a gente conhece como nunca o buraco (la cueva) onde o diretor guarda suas memórias, seus desejos e suas cores. Abração!
ResponderExcluirObrigado Nathan pelo seu sensível comentário. O bom de tudo é ver um novo Almodóvar, mas ainda o reconhecer nessa mudança. Como todo bom mergulho na velhice, Dor e Glória nos traz junto a infância, com sua crueza e delicadeza. Abração!
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