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COMPRA-ME UM REVÓLVER - Direção de Julio Hernández Cordón

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O México dos cartéis é aqui: a violência explícita como essência definidora de uma sociedade

Por Marco Fialho

A primeira imagem que me vem à cabeça ao assistir o filme mexicano "Compra-me um revólver", dirigido por Julio Henández Cordón, são os diversos documentários que já passaram eventualmente pelo Brasil em alguns festivais de cinema, onde retratam a violência atroz, de natureza inumana dos cartéis, grupos paramilitares que controlam drogas e diversos vilarejos mexicanos.

Outra reflexão a ser feita a partir de "Compra-me um revólver" é sobre a nossa atual situação como país, onde vemos consternados o aumento do domínio de grupos milicianos, igualmente violentos, dispostos a resolver no tiro e na ameaça terrorista os conflitos sociais de comunidades, em sua maioria bem pobres. Esses criminosos se julgam imunes à justiça, impondo à força suas leis próprias, submetendo a todos impiedosamente uma agressividade sem limites. Uma forma de se fazer política pautada numa violência abusivamente sanguinolenta.
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Cordón foge de um discurso direto sobre os cartéis. Procura sustentar sua narrativa pela ótica da menina Huck (a excelente Matilde Hernandez). Esse viés acrescenta ao filme um reluzente caráter simbólico à trama. Até algumas claras demonstrações de violência, como o braço mutilado do menino Angel, não está ali somente pelo seu significado (literalidade), mas está presente para pensarmos muito mais além, para expressar um significante, em especial para representar como a infância é tratada nesse ambiente, e qual a sua relevância social.

"Compra-me um revólver" trabalha muito com os simbolismos. O pai da menina mora em um trailer e cuida de um campo de beisebol usado para o lazer de um dos líderes do cartel. Huck é tudo o que foi salvo de sua vida pregressa, já que a sua mulher e a filha mais velha lhe foram roubadas pelo chefe do cartel. Em uma determinada cena ele limpa o sangue de um carro blindado, que mais parece um caveirão (veículo genocida usado pelas forças militares no Rio de Janeiro para invadir impunemente as favelas cariocas). Assim, Cordón mais uma vez consegue fugir do explícito, deixando alguns detalhes falarem com sucesso por si sobre o tema da violência dos cartéis.
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Apesar de Huck ser uma menina, o pai cria para ela um disfarce de menino, já que os cartéis roubam as poucas mulheres ainda vivas. Ainda simbolicamente ela usa uma máscara e um capacete de beisebol que a ajudam no exercício de seu papel masculino. Há então uma grande tensão em todo o decorrer do filme, às vezes uma angústia acerca da descoberta do verdadeiro gênero de Huck, fora o nervosismo pelo simples fato da existência opressiva e permanente de algum membro do cartel. A inquietude da menina e seu espírito insubordinado e desobediente geram momentos extras de suspense, sem contar a entrega compulsiva de seu pai às drogas.

No pequeno vilarejo em que vivem, perambulam errantes, crianças que conseguiram fugir das garras dos cartéis, entre eles Angel (o menino do braço mutilado) que sonha permanentemente, de forma ingênua, em conseguir seu membro cortado de volta. Eles possuem um boneco que representa a mãe de todos, já que todas elas estão em poder dos cartéis. A vida é realmente algo fugidio e sem nenhum valor, mata-se com uma naturalidade desmedida. Todos os descalabros dos cartéis são sustentados por uma estranha religiosidade, onde o matar o próximo é livremente permitido e torna-se a própria reza. Na parte de trás do colete deles contém frases ou palavras que remetem a Deus. Em um deles está escrito "o escolhido", como se eles fossem então a própria divindade; ou ainda "Deus está comigo", como se subliminarmente o filósofo Nietzsche ecoasse sua célebre sentença: "Deus está morto" ou aqui poderia ser adaptada para "Deus é a morte".
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Assim, "Compra-me um revólver" nos mostra a morte real, e também simbólica, de um local quando a violência e a matança desenfreada leva à ausência de um mínimo de humanidade nas relações sociais. Ali a violência se tona a essência, permeia todas as camadas de convivência. Entretanto, Cordón se esforça a todo o instante em resgatar o mínimo de civilidade desse ambiente. Por isso, ele transforma as crianças em porta-vozes de seu discurso e investe em suas fantasias como única salvação, mesmo que elas tenham que assumir o papel de adultos em momentos cruciais de suas vidas. Se o filme em alguma medida escorrega no final para uma cena pouco crível, ele também evidencia, metaforicamente, que a saída está nas novas gerações que precisam reverter os valores desse mundo, onde as armas fatais ditam a política de um povo. Isso dialoga diretamente com a sociedade brasileira atual, onde as armas de fogo parecem se sobrepor à racionalidade e a educação. Portanto, não duvidemos se em um amanhã muito próximo proferirmos a funesta sentença de que "o México dos cartéis é aqui".

Visto no Espaço Itaú de Cinema 3, no dia 01/06/2019.
Cotação: 3 e meio/5

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