O zumbi que somos
Por Marco Fialho
"A sombra do pai" é o segundo longa de Gabriela Amaral Almeida, diretora que foi muito incensada pelo grande sucesso de seu primeiro longa, "O animal Cordial". Comparando as duas obras, nota-se um refinamento da diretora na nova obra, um vigoroso movimento para o lapidar de seu cinema. Trata-se agora mais de uma proposta do sobrenatural do que realmente de um terror mais pungente e violento, como revelou em sua obra anterior. Nesse agora, o psicológico impede que o filme descambe para um estilizado slasher, que soou como deveras forçado em "O animal cordial". Em "A sombra do pai", Gabriela consegue inserir na trama pequenos detalhes, sutilezas, como sobras de dentes, cabelo e bijuterias da mãe morta que reforçam e aguçam, mais do que os próprios diálogos, percepções que precisamos obter para nos arremessar na história.

Mas de qualquer forma, assim como em "Animal cordial", o peso da história está garantido. Morte, visões, zumbi e assombrações compõe essa obra esmerada e bem acabada. Fica ainda uma reflexão sobre a pauperização do mundo do trabalho e acerca do abandono familiar. Destaque para a fotografia da prestigiada Barbara Alvarez, que já trabalhou com diretoras importantes como Lucrecia Martel e Anna Muylaert. Em "A sombra do pai" ela cria uma atmosfera soturna, escancaradamente impregnada pelo ocre, que por sua vez, nos remete diretamente à terra, e evidentemente, aos mortos. Os cenários, em especial a casa de Dalva, reforçam essa ideia assustadora que ronda todo o filme.
A montagem precisa de Karen Akerman consegue amarrar as cenas de maneira indutiva. Quando a personagem Cristina (a sempre ótima Luciana Paes), tia de Dalva, fala que o irmão é pedreiro serve de ensejo para o corte da cena para uma marreta quebrando um muro de concreto. O que poderia ser algo óbvio, logo se reverte, pois o que assistimos em seguida não é o irmão trabalhando, mas sim em uma situação pessoal ao invés de profissional. Em várias ocasiões, essas situações de montagem se repetem e funcionam extremamente bem, pois trabalham com nossa percepção ao nos incitar falsas expectativas.

Mas Dalva é a grande protagonista de "A sombra do pai". E é com um misto de tormento e prazer que acompanhamos a valentia de Dalva, ancorada em poderes sobrenaturais que supõe ter, a ponto de na sua ingenuidade infantil acreditar que trará a mãe morta de volta, talvez cansada de ter que viver como uma adulta precoce, pois assim a vida se ofereceu a ela. Por isso Dalva é guerreira, uma super-heroína da vida, uma existência periférica como tantas outras que precisam se reinventar cotidianamente, mesmo tendo que enfrentar uma vida tanto material quanto espiritual miserável. Seu maior ato de heroísmo é o de tentar viver ao máximo sua infância, mesmo que a mesma seja permeada por um viés mórbido. A fantasia e a imaginação, características tão comuns e presentes em todas as crianças que conhecemos, aparecem também em Dalva, todavia, entremeadas pelos fatos trágicos que marcaram precocemente sua vida.

Exibido em setembro no 51º Festival de Brasília, o filme soou como uma metáfora sutil da Era Temer. Mas ao entrar em circuito agora em maio de 2019, nos primeiros meses desse sombrio Governo Bolsonaro, ele parece até ampliar essa metáfora inicial. O filme mostra ainda o aviltamento das relações de trabalho nesse período e a desvalorização da vida do trabalhador perante chefes opressores, interessados tão somente em seus lucros de ocasião. A transformação do pai de Dalva (Julio Machado) praticamente em um zumbi infeliz é simbólico, pois é assim que a sociedade pós-2016 vem caminhando, para uma apatia sem tamanho. Gabriela preferiu nos contar essa história sob o ponto de vista de Dalva, talvez para salientar o seu viés lúgubre, e nos mostrar que na perspectiva das futuras gerações, o quanto somos zumbis, o quanto como cidadãos somos órfãos.
Visto no Estação Net Rio 1, em 04/05/2019.
Cotação: 4/5
Que belo olhar! Texto lindíssimo que investiga com sensibilidade força e delicadeza esse belíssimo filme!
ResponderExcluirGrato pelo comentário!
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