Pular para o conteúdo principal

INFERNINHO - Direção de Guto Parente e Pedro Diógenes



A beleza para além das aparências

Por Marco Fialho

É preciso se comemorar muito mesmo quando um filme com as características de "Inferninho", dirigido por Guto Parente e Pedro Diógenes, ambos integrantes do Alumbramento, o mais famoso coletivo audiovisual brasileiro, chega ao nosso afunilado circuito comercial. A obra já havia sido exibida na Mostra Caleidoscópio, do Festival de Brasília 2018, onde teve uma ótima repercussão. O filme consegue mesclar dois elementos que raramente são presentes em uma mesma obra, por serem bem díspares: estranhamento e doçura. O espectador então é permanentemente invadido por sensações aparentemente ambíguas, pois de uma só vez é mergulhado em um ambiente de submundo bizarro e eivado de ternura. Antes de tudo, "Inferninho" propõe um pensamento acerca do mundo aparente, ou melhor, sobre o mundo das aparências.

Os diretores conseguem fazer de "Inferninho" uma ode ao amor, com personagens expressivos vindos desse submundo, os renegados pela sociedade, os que habitam um inferninho bem pé de chinelo. Parente e Diógenes fazem desse microcosmo seu todo, o abraçam ternamente, como ele se bastasse em si mesmo e isso faz toda a diferença. 
Imagem relacionada
Para a construção desse universo único e surpreendente, os diretores investiram forte na proposta do cenário do inferninho, bastante estilizado e não realista, assim como as interpretações, que igualmente, fogem de uma concepção naturalista e realista, onde as cores explodem na tela e reforçam uma atmosfera kitsch. Há uma visível inspiração em "Querelle", de Fassbinder, não só pela cenografia propositadamente artificial e teatral, mas sobretudo pela atmosfera lúdica a qual diretores se empenham em construir. Fora os personagens desgarrados, inclusive o de um marinheiro, que pela sua mera presença já insinua que o tal inferninho está situado possivelmente numa zona portuária.

Todavia, vale ressaltar que esse não lugar de inferninho talvez seja o seu maior trunfo. Nossa costa litorânea é tão extensa que aumenta ainda mais essa indeterminação espacial, o que nos leva a crer que o inferninho realmente é o todo, é o cosmo a ser refletido e vivido. Há um convite ao acolhimento, ao aconchego e essa característica soa como um convite a adentrarmos nesse mundo inusitado a princípio, que mesmo que exótico nos vislumbra ser a cada minuto mais atrativo. Impressionante como os diretores conseguem nos pegar pelas mãos e nos envolver nesse mundo tão diferente. A direção de arte de Tais Augusto e a fotografia de Victor de Melo fazem essa função de nos enfeitiçar, pois as imagens misturam cores quentes com uma ambiência de pouca luz que nos sugestionam uma ideia de conforto visual. Sem contar com as músicas, perfeitamente escolhidas, que garantem o tom intimista ao longo do filme. O estranhamento de "Inferninho" existe, lógico, mas está definitivamente em outro lugar, nos personagens.
Imagem relacionada
E os personagens são realmente uma atração à parte. Sempre há neles algo de lúdico e performático, a começar pela protagonista Deusimar, dona do tal inferninho, uma trans. Mas outros merecem ser citados, como o coelho, o Mickey, o homem-aranha, o Wolverine, o Batman e o Darth Vader. Para completar uma cantora decadente e desafinada de cabaré chamada Luiziane, e Jarbas, um marinheiro que parece fugir de algumas dívidas pessoais contraídas.

Sinteticamente, "Inferninho" é uma obra bem acabada, delicada e amorosa, que consegue nos fazer afeiçoar com personagens marcantes do submundo e ávidos por viver sonhos. As cenas onde Deusimar passeia pelo mundo são belíssimas. Mas podemos ver essas cenas de outra forma. O melhor seria acreditarmos, embalados pelo lúdico que o filme nos inspira, que o mundo é que visita Deusimar, numa singela homenagem dos diretores Guto e Pedro à beleza de viver. Há em "Inferninho" uma ode ao carinho, uma perspectiva de que o afeto pode nos levar longe, independente do espaço e do mundo aparente. Definitivamente, a beleza está para além das aparências.

Visto no Festival de Brasília 2018.   
Cotação: 4 e meio/5

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

ÁLBUM DE FILMES VISTOS EM 2023 - 340 filmes

DESTAQUES FILMES INTERNACIONAIS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-filmes-internacionais-em-2023.html?m=1 DESTAQUES FILMES BRASILEIROS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-de-2023-filmes-brasileiros.html?m=1 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 (cinefialho.blogspot.com) ESPECIAL FIM DE ANO: 14 VÍDEOS DO BATE-PAPO CINEFIALHO DE 2023: O REINO DE DEUS (2023) Dir. Claudia Sainte-Luce Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ GUAPO'Y (2023) Dir. Sofía Paoli Thorne Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ AS GRÁVIDAS (2023) Dir. Pedro Wallace Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ À SOMBRA DA LUZ (2023) Dir. Isabel Reyes Bustos e Ignacia Merino Bustos Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ PONTES NO MAR (2023) Dir. Patricia Ayala Ruiz Vídeo:  Marco Fialho (@ci

GODZILLA - MINUS ONE

Texto de Marco Fialho O maior mérito de "Godzilla - Minus One" está na maneira como o diretor Takeshi Yamazaki conjuga a história narrada com o contexto histórico do Japão pós segunda guerra. O monstro Godzilla é fruto direto do efeito nuclear provocado pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos.  O filme funciona como uma resposta à vergonha japonesa ao difícil processo de reconstrução do país, como algo ainda a ser superado internamente pela população. A partir desse fato, há um hábil manejo no roteiro para que a história funcione a contento, com uma boa fluência narrativa.  Aqui o monstro é revelado desde o início, não havendo nenhuma valorização narrativa, ou mistério, sobre a sua aparição. Mas se repararmos com atenção, "Godzilla - Minus One" é  um filme de monstro, embora se sustente tendo na base um melodrama de dar inveja até aos mais radicais da safra mexicana dos anos 1950. A história parte de Koichi, um piloto kamikaze que se recusa a executar uma or

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras difere