
Sexo é expressão e a censura é pornográfica!
Por Marco Fialho
Inusitadamente tudo transcorre em uma pequeníssima sala de cinema, normalmente utilizada para cursos, no nobre templo do cinema que é o Estação Botafogo. O ambiente é de total intimidade, porque a primeira coisa que nos vem à cabeça é como realizar uma peça de 70 minutos nesse minúsculo espaço. Mais tudo vale à pena, e como vale! Esse ambiente claustrofóbico é ideal para tudo o que veremos a seguir, a adaptação da peça "O censor" (1997). O momento político brasileiro também é propício para se receber o texto explosivo do dramaturgo escocês Anthony Neilson. O cenário montado em si é muito simples, inteiramente adequado ao espaço: uma mesa-cama de madeira, na qual trabalha o censor, duas cadeiras, e uma pequena mesa na lateral da sala, onde o censor interage com sua esposa (Emilze Junqueira). Alguns objetos de cena completam o cenário, como um celular, umas flores artificiais, umas taças, um tablet e uma garrafa de vinho.

Se uma palavra pode definir a montagem da peça-filme "O censor" é intensidade. Há uma notória paixão de estar em cena, uma presença cênica arrebatadora, afinal teatro é antes de tudo mesmo presença. O enredo trata do embate entre uma ousada e libertária diretora de cinema e um jovem censor, que almeja proibir que seu novo filme chegue ao público. O texto de Neilson nos pergunta sistematicamente quais seriam os limites entre arte erótica e pornográfica, e vai fundo nessa abordagem ao nos mostrar que o único ato pornográfico possível, nesse caso, é o da censura.
Nessa montagem intimista e altamente sensorial, o que mais nos marca é o precioso amálgama entre texto e corpo que confrontados a cada minuto, reafirmam a luta e as contradições das narrativas que nos são dadas pelos dois personagens em cena. E Patrícia Niedermeier, no auge de sua maturidade, se apropria da personagem Senhorita Fontaine e nos entrega algo visceral, se utilizando de artifícios convincentes, como o do olhar, que muitas vezes dizem mais do que o próprio texto ou suas incisivas ações. Patrícia e sua Fontaine dá o ritmo e a pulsão à peça e Alexandre Varella (o censor) segue o fluxo e o vigor ditado por ela. Esse é o tipo de montagem onde a química entre os personagens traduz a vitalidade, ou não, do resultado final, pois eles são os alicerces da construção dramatúrgica. Algo que também se soma, nesse caso, é a proximidade intimista dos atores com o público, somos sugados compulsivamente pelo calor vindo de uma representação vivaz que acontece no palco.

Apesar de escrito por um homem, há um jorro nitidamente feminista no texto e que Patrícia e Varella aproveitam muito bem. Há uma obsessão na censura sim, mas há sobretudo uma interdição pelo fato do filme expressar a visão erótica de uma mulher, com sua carnalidade própria, expressiva do prazer que emana desse corpo feminino. Afinal, sexo é expressão, como bem diz a senhorita Fontaine. O clima que predomina na peça beira o incestuoso, já que dialogar com o censor não é tarefa das mais fáceis. Os tabus e os preconceitos são colocados ali desenvergonhadamente, pois afinal, em qual século poderemos enfim nos libertar das amarras colocadas em torno do corpo humano?
Nesse ponto, surgem então um elemento que até aqui propositalmente ainda não mencionamos, a inserção dos vídeos, afinal, o próprio espaço cênico escolhido em si já possui uma tela de cinema. Os vídeos aparecem em três momentos específicos. Mas é no segundo que queria me fixar aqui. As cenas onde com o auxílio de uma lente macro vemos animais e plantas copulando em mega closes. E eis que a imagem se fixa numa cena linda de dois caramujos fazendo sexo, sim, essa é a plena sensação que temos, que eles ali estão transando. A humanização dessas imagens é impressionante e aí mais uma vez o ambiente intimista imprime a sensação invasiva que os diretores almejam conquistar. Essa humanização dos caramujos (em um determinado momento transformados magicamente um só) mostram justamente a perversidade na qual se assenta os tabus construídos sobre o sexo. Embora aí não haja fala e discursos, as imagens discursam exemplarmente e a mensagem é clara: ao se distinguir da beleza do mundo natural, o homem se diferenciou, se distanciou e perdeu a capacidade de ver no ato sexual o encanto que ele tem. A imagem de sujeira no ato se impôs de tal forma em nossa cultura, que quando as artes resgatam o viés da corporeidade, são violentamente atacadas por um status quo retrógrado e violento. Por isso os diretores acertam em cheio quando optam pela inserção dessas lindas imagens do mundo animal. Mais do que ser sutil, eles vão no ponto exato, o da valorização do ato em sua mais nobre beleza, em busca da nossa animalidade infelizmente perdida.
E os vídeos talvez sejam responsáveis pelo aspecto mais inventivo dessa montagem tupiniquim de "O censor", pois eles representam a introdução de elementos que não estão apontados no texto dramatúrgico, mas que dialogam de uma vez só com o nosso presente e com o universo dos diretores, em especial de Cavi Borges, um artista até então restrito ao cinema. Mas esses vídeos são potentes também para nos sinalizar que historicamente a censura acompanha as artes. Não casualmente, a peça se inicia com uma performance impactante e profundamente sensual e inebriante de Patrícia Niedermeier sob as imagens de diversos filmes, todos realizados por mulheres (Agnes Varda, Chantal Akerman, Maya Derin, Érica Lust), censurados ao longo desses 125 anos de cinema e acusados de serem pornográficos.
Essa montagem de "O censor", então, vem mexer em um terreno bastante argiloso, o do corpo, em especial o feminino, envolto em tabus, preconceitos e desconhecimentos, e com valores que apesar de serem obviamente ultrapassados, ainda vigoram fortemente no século 21. A libertação do corpo é um importante caminho para uma futura felicidade humana, mas ela está entrelaçada com outras amarras, econômicas, sociais e culturais. O grande trunfo dessa montagem de Cavi e coletivo é conseguir dialogar profundamente com essa história, por meio de um texto que aborda o sexo a partir de sua própria perspectiva, o que nos surpreende e arrebata fortemente. Todavia, a sua grande qualidade é atualizá-lo para o nosso tempo (o que aliás agradaria enormemente a Bertolt Brecht, que se sentiria também fortemente homenageado), abrindo um diálogo fundamental sobre o tema da censura nas artes também em nossos dias. Antes de termos um governo conservador, temos uma sociedade igualmente conservadora, pois é ela que mantém ou permite a existência desse status quo tacanho, que prefere à perseguição pura e simples ao invés do diálogo franco e aberto.
Assim, no vídeo final, vemos o personagem do censor atuando performaticamente no palco, enquanto assistimos ao fundo imagens históricas e contundentes de manifestações artísticas censuradas. Isso, em si, é de uma potência extraordinária. Desfilam ali filmes como "Je vous salue Marie" (Godard), "Laranja mecânica" (Kubrick), "Fahrenheit 451" (Truffaut); exposições como a "Queer Museu" e cenas da peça "O evangelho segundo Jesus rainha do céu". São atualizações inesperadas para o espectador, que se vê invadido por imagens para além do artifício cênico, e que o arremessa abruptamente para o violento processo da censura real, não mais só a simbólica, expressa na representação dos atores em ação.
Apesar de todo o histórico de censura vivido, ainda conseguimos acalentar e nutrir uma esperança de um futuro libertador para os corpos, muito será devido aos artistas que corajosamente no passado e no presente lutaram e lutam para transformar pessoas em prol de um mundo sem amarras. "O censor" joga contundentemente com esses temas e nos conclama veementemente à libertação dos corpos, mas plenamente consciente que antes é necessário darmos uma guinada na maneira preconceituosa como pensamos nossa relação histórica com o sexo.
Visto na sala de cursos do Estação Net Botafogo, em 18/04/2019.
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