
O encontro fatal entre o século 20 e o 21
Por Marco Fialho
Christian Petzold vem se firmando como um dos diretores mais consistentes do momento. Depois de "Bárbara" (2012) e de "Phoenix" (2014), ele nos brinda com o criativo "Em trânsito", filme em que desenvolve uma trama que requer toda a atenção do público por conter camadas de tempo que dialogam magistralmente. E é o ardil do tempo o maior diferencial dessa obra, a faceta desafiadora que instiga a pensar sobre as possíveis aproximações entre duas épocas históricas distintas.
O mais curioso nesse jogo temporal montado por Petzold é a forma como ele se estabelece. Não há idas e vindas no tempo, o enredo se desenvolve linearmente, supostamente em um tempo presente. A ocupação alemã na França transcorre em paralelo à problemática dos refugiados africanos de hoje, ambas coabitam no mesmo espaço, na Marselha de nossos dias. O que os diferencia é apenas nosso olhar, que estranhamente se depara com carros e roupas do século 21 adentrando na trama que discorre em pleno meados do século 20, em uma França prestes a ser ocupada por tropas alemãs.

A grande questão que o filme suscita é justamente a capacidade de refletir sobre o acionamento do dispositivo do tempo, o que ele acarreta e provoca tanto na trama quanto nos espectadores. Trazer o passado para o presente é sobretudo um alerta de como nos relacionamos com a história. Enquanto a Segunda Guerra Mundial projetou um ódio discriminatório e assassino perante o povo judeu, hoje há um movimento semelhante de intolerância aos povos oriundos de regiões da África e Ásia, que buscam se refugiar majoritariamente em países europeus. Será possível os europeus não lembrarem que foram impérios colonizadores de diversos desses povos e agir como se não tivessem nada a declarar sobre o assunto? São indagações que pairam, que o filme poderosamente traz e surpreende pela junção dos tempos que ele propõe.
Assim como em "Phoenix", obra anterior de Petzold, "Em trânsito" aborda também a questão da identidade. Em um momento histórico onde a vida humana pouco importa e quando todos se assemelham mais a uma sombra, assumir identidades alheias nos fazem pensar acerca da capacidade que temos de sobreviver às adversidades em um mundo soterrado em ausências. Não casualmente, Petzold insistentemente em colocar a câmera no rosto do protagonista Georg (Franz Rogowski, que parece um dublê de Joaquim Phoenix de tão parecido que é) e essa estratégia dramatúrgica, antes de revelar elementos de proximidade do personagem apenas nos arremessa em uma personalidade inconstante e frágil.

Petzold engenhosamente cria uma atmosfera onde todos parecem caminhar para um abismo e pairam sobre eles uma nuvem, um prenúncio de alguma catástrofe que está pronta a emergir. São todos vítimas de alguma guerra, são desgarrados e fadados ao fracasso. São seres sempre em busca de algo ou pessoas que se perderam no caminho. Cada personagem carrega fraturas, ou melhor, suas vidas fraturadas. A intolerância do passado e do presente impregnam a inquietante trama e impulsionam todos para o precipício da história. Por isso mesmo, todos os amores são inviáveis, todos eles estão dilacerados e inviabilizados de alguma forma. Derradeiramente, apesar da urgências dos corpos, a guerra é um terreno hostil ao amor. "Em trânsito" também fala disso, de ausências, não só as do amor romântico, mas ceifa violentamente ainda a paternidade, interditada pelo terror das guerras.
Grandiosamente, Petzold coloca personagens e trama no mesmo patamar, o da imprecisão. Mesmo optando por uma narrativa linear, o diretor tece uma história cheia de emaranhamentos e complexidades, onde personagens e trama nunca são o que aparentam ser. "Em trânsito" trabalha sempre com a instabilidade do jogo temporal proposto e com as camadas ricamente presentes na narrativa. Permanentemente nos deparamos com a superfície e com o que está no fundo, e é nessa dialética que Petzold reconstrói mundo e temporalidades incertas. Comumente, os espectadores se fixam apenas na camada da superfície dos filmes e tudo segue a normalidade. "Em trânsito" obriga e desafia todos a pensar imageticamente, e concomitantemente, nas camadas de tempo e espaço. Isso é uma proeza advinda de uma acertada opção dramatúrgica do diretor, que" consegue criar para o espectador um paradoxo interessante, o de entretê-lo e ao mesmo tempo fustigá-lo a pensar de uma só vez sobre a intolerância humana e o ardil narrativo em cinema.
Visto no Estação Net Rio 1, no dia 13/04/2019.
Cotação: 4/5

A grande questão que o filme suscita é justamente a capacidade de refletir sobre o acionamento do dispositivo do tempo, o que ele acarreta e provoca tanto na trama quanto nos espectadores. Trazer o passado para o presente é sobretudo um alerta de como nos relacionamos com a história. Enquanto a Segunda Guerra Mundial projetou um ódio discriminatório e assassino perante o povo judeu, hoje há um movimento semelhante de intolerância aos povos oriundos de regiões da África e Ásia, que buscam se refugiar majoritariamente em países europeus. Será possível os europeus não lembrarem que foram impérios colonizadores de diversos desses povos e agir como se não tivessem nada a declarar sobre o assunto? São indagações que pairam, que o filme poderosamente traz e surpreende pela junção dos tempos que ele propõe.
Assim como em "Phoenix", obra anterior de Petzold, "Em trânsito" aborda também a questão da identidade. Em um momento histórico onde a vida humana pouco importa e quando todos se assemelham mais a uma sombra, assumir identidades alheias nos fazem pensar acerca da capacidade que temos de sobreviver às adversidades em um mundo soterrado em ausências. Não casualmente, Petzold insistentemente em colocar a câmera no rosto do protagonista Georg (Franz Rogowski, que parece um dublê de Joaquim Phoenix de tão parecido que é) e essa estratégia dramatúrgica, antes de revelar elementos de proximidade do personagem apenas nos arremessa em uma personalidade inconstante e frágil.

Petzold engenhosamente cria uma atmosfera onde todos parecem caminhar para um abismo e pairam sobre eles uma nuvem, um prenúncio de alguma catástrofe que está pronta a emergir. São todos vítimas de alguma guerra, são desgarrados e fadados ao fracasso. São seres sempre em busca de algo ou pessoas que se perderam no caminho. Cada personagem carrega fraturas, ou melhor, suas vidas fraturadas. A intolerância do passado e do presente impregnam a inquietante trama e impulsionam todos para o precipício da história. Por isso mesmo, todos os amores são inviáveis, todos eles estão dilacerados e inviabilizados de alguma forma. Derradeiramente, apesar da urgências dos corpos, a guerra é um terreno hostil ao amor. "Em trânsito" também fala disso, de ausências, não só as do amor romântico, mas ceifa violentamente ainda a paternidade, interditada pelo terror das guerras.
Grandiosamente, Petzold coloca personagens e trama no mesmo patamar, o da imprecisão. Mesmo optando por uma narrativa linear, o diretor tece uma história cheia de emaranhamentos e complexidades, onde personagens e trama nunca são o que aparentam ser. "Em trânsito" trabalha sempre com a instabilidade do jogo temporal proposto e com as camadas ricamente presentes na narrativa. Permanentemente nos deparamos com a superfície e com o que está no fundo, e é nessa dialética que Petzold reconstrói mundo e temporalidades incertas. Comumente, os espectadores se fixam apenas na camada da superfície dos filmes e tudo segue a normalidade. "Em trânsito" obriga e desafia todos a pensar imageticamente, e concomitantemente, nas camadas de tempo e espaço. Isso é uma proeza advinda de uma acertada opção dramatúrgica do diretor, que" consegue criar para o espectador um paradoxo interessante, o de entretê-lo e ao mesmo tempo fustigá-lo a pensar de uma só vez sobre a intolerância humana e o ardil narrativo em cinema.
Visto no Estação Net Rio 1, no dia 13/04/2019.
Cotação: 4/5
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