A humanização de Ihjãc
Por Marco Fialho
No ano passado vimos "Ex-pajé", intrigante filme-denúncia de Luiz Bolognesi sobre um pajé da etnia Paiter Suruí, que abre mão de sua tradicional função religiosa para virar um varredor de chão em um templo evangélico, por ser convencido pelos brancos que suas práticas culturais e espirituais anteriores eram demoníacas. Agora em 2019, nos chega aos cinemas "Chuva é cantoria na aldeia dos mortos", dirigido pelo casal Renée Nader Messora e João Salaviza, que apesar de não ter o caráter de denúncia de "Ex-pajé", aborda também o tema da religiosidade em outra etnia indígena, os Krahô, só que adotando um viés mais poético e psicológico. Entretanto, essa reincidência de temáticas não deve ser desconsiderada, pois em ambos os casos estão presentes o etnocídio dos povos indígenas pela cultura branca colonizadora. Por essas qualidades, "Chuva é cantoria..." foi agraciado com o prêmio "Un certain regard" do juri no Festival de Cannes 2018.
A grande reflexão que fica de "Chuva é cantoria..." é a dificuldade de se coadunar as culturas tradicionais em um mundo onde a dominação do homem branco é avassaladora e funciona como uma grande sombra sob o universo cultural das etnias tradicionais. Há um dado emocional e psíquico que muitas vezes não estão postos nos filmes que abordam essa problemática mais profunda, que mexe com a psiquê dessas populações, que retorna a velha indagação acerca das consequências dessa interação. Lembramos que todos os habitantes da aldeia possuem um segundo nome branco, o que marca não só uma cisão entre as culturas, mas também assinala uma relação desigual e de inferioridade, pois afinal os brancos não possuem igualmente um nome advindo de uma tradição indígena.
Quando na primeira cena de "Chuva é cantoria..." o jovem Krahô Ihjãc dialoga com a voz do pai (já morto) no rio temos a exata diferenciação espiritual em relação a nossa cultura, de um modo de compreender a vida e a morte que flui através da relação com a natureza, o que nós brancos já perdemos faz tempo. Assim nasce dois conflitos no filme: um primeiro que envolve sua identidade étnica como pajé (um líder religioso), e outra um sinal de que o luto pela morte do pai precisa ser vencido, para que sua alma possa ficar tranquila.
Mas Ihjãc, apesar de já ter mulher e um filho, é um jovem repleto de conflitos sobre o seu próprio futuro. Ele acha que está doente e foge para a "cidade" dos brancos em busca de uma cura, sendo que sua "doença" não é física, mas sim espiritual. Esse é o ponto central de "Chuva é cantoria...", uma crise emocional profunda, psíquica desse indígena Krahô. Mas o mundo branco não vê essa crise, para os brancos os povos tradicionais não possuem psiquê, não tem o estatuto humano, são apenas entraves para o desenvolvimento. No mundo dos brancos, essas etnias estão no limbo, por isso ficam hospedados provisoriamente numa casa de apoio. Eles estão situados em um entre mundos. Ihjãc é um ser especial, um potencial pajé, mas vai buscar conforto no burocrático atendimento médico dos brancos.
Para além do que já foi aqui dito, o périplo de Ihjãc pode ainda ser visto em um outro e decisivo horizonte, o do ponto de vista de sua própria humanidade, pois como qualquer ser, ele precisa encarar as incertezas de sua existência. Isso acarreta dúvidas sobre seu futuro como homem. E esse viés deve ter sua importância aqui ressaltada, sob o peso de não vermos esse personagem angustiado e cheio de dilemas, mais uma vez como objetificação do homem branco. Não casualmente temos diversos planos com Ihjãc pensativo. Ele tem poderes sim, tanto sobre sua vida quanto de sua morte. Esse é o grande mérito dos dois diretores desse cativante filme.
Visto no Espaço Itaú de Cinema, no dia 20/04/2019.
Cotação: 4 e meio/5.
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