Pular para o conteúdo principal

AMOR ATÉ AS CINZAS - Direção Jia Zhang-Ke

Resultado de imagem para amor até as cinzas
O progresso decadente da China por trás de Qiao e Bin

Por Marco Fialho

"Amor até às cinzas", novo filme do cultuado diretor chinês Jia Zhang-Ke, é por demais traiçoeiro. Há nele algo de escorregadio e isso não está propriamente explícito na trama. É necessário se pensar um pouco sobre seus personagens, pois eles são todos tão nebulosos que nos criam uma barreira, um distanciamento para com eles. Não à toa assistimos a diversas traições durante o transcorrer da história. Entretanto, a maior traição mesmo vem de Jia, pela forma como ele insere os personagens na trama. A impressão que temos continuamente é que tudo que vemos não é exatamente o que é, e esse parece ser o ardil proposto pela narrativa de Jia Zhang-Ke.

Jia Zhang-Ke se impõe como um manipulador exemplar em "Amor até às cinzas" ao misturar artesania e autoralidade de uma só vez. Imprime minuciosamente sua visão acerca de uma China corroída por dentro, mas como se a sua própria narrativa também estivesse inteiramente contaminada por ela. O filme consegue incorporar as contradições existentes em uma China dominada pela noção de progresso e grandiosidade, mas cujos meandros são os mais sujos e reles possíveis. Os valores que predominam são os da lealdade e justiça de uma máfia que sobrevive pelas práticas do crime e da violência.
Imagem relacionadaQuando os setores subalternos se tornam reféns de um Estado que lhes impinge um frágil arremedo de si mesmo, tudo faz crer que a decrepitude se anuncia, que a humanidade está a decair ferozmente. É disso que se trata "Amor até às cinzas", de um mundo assentado pela vigência de um submundo cruel e desumano. Não casualmente, Jia Zhang-Ke investe pesado nos personagens. E não poderia ser diferente. São eles quem põe à prova os desconcertos do mundo. O filme se sustenta basicamente em dois personagens, o casal Qiao (Zhao Tao) e Bin (Liao Fan) e é através deles que toda a trama gira e que Jia nos mergulha na excludente China do século 21, onde o capital impera, governa e onde os seres humanos são joguetes e peças a serem facilmente descartadas por um sistema dilacerante.

Tal como na máfia italiana, onde os conceitos de fidelidade e lealdade servem de espelho para outras organizações que almejam poder pela violência, Jia também constrói uma ideia dilacerante acerca da máfia chinesa. Enquanto os mafiosos do século 20 eram sustentados por algum comércio ilegal, aqui no século 21 eles são bandidos subservientes de corporações que dominam para explorar trabalhadores em usinas e mineradoras. Se alguém tiver alguma dúvida, basta lembrar do personagem do pai de Qiao, um minerador que luta por seus direitos em meio a um Estado que ignora os mais pobres, que os deslocam para bairros operários, os isolando da sociedade.

Imagem relacionada
O que "Amor até às cinzas" denuncia são as falácias dos códigos de honra desses pequenos gangsteres, o quanto seus valores são frágeis e comprometem as relações humanas, tanto as cotidianas quanto as amorosas. Interesses momentâneos que prevalecem sobre juras de sangue. Qiao pode tentar a todo o momento juntar os cacos desses acordos tão celebrados em cerimônias fugidias que não suportam o primeiro tiro desferido. Quando a traição parte de seu líder, o que temos é o esfacelamento total do convívio humano, uma desumanização que atinge o cerne dos códigos estabelecidos e revela a fragilidade dos laços que sustentam essas relações humanas. A ideia de justiça então se dissolve frente a dos interesses escusos e medíocres. Essa ética é resumida numa rápida e curta frase proferida por Bin, namorado mafioso de Qiao: "pessoas como nós é sempre matar ou morrer".

Um artifício interessante trabalhado por Jia Zhang-Ke é o da música e da dança. Ele introduz esses elementos de forma a salientar muito mais aspectos simbólicos do que meramente ilustrativos na trama. A americanização é uma das facetas também desse progresso imperioso que corrói as entranhas chinesas. A relação de Qiao com a música talvez seja a que melhor expressa essa influência. Ao ser indagada porque não praticava dança de salão, ela diz que a mesma era muito ocidental, mas contraditoriamente, a vemos duas vezes dançar efusivamente músicas do clássico "disco" americano dos anos 1970. Essa dança entusiasmada de Qiao também agregava muito ao perfil dramatúrgico da personagem, muito diz acerca da energia e capacidade de encarar a vida.
Imagem relacionada
A montagem proposta por Jia pode soar como pouco criativa e até convencional ao extremo, mas o grande mote do filme está posto para além de sua minuciosa mise-en-scène. Talvez esteja mais em como os personagens se articulam com a atmosfera extra-campo do que com o próprio cenário em si, pois o que Jia revela sempre é uma relação dos personagens com o mundo. Todos estão presos de alguma forma e quando Jia coloca Qiao voltando de ônibus para visitar a pequena comunidade operária do pai vemos as impossibilidades como um todo. Tudo parece sem saída, tanto a vida ordinária do pai quanto a vida marginal de Qiao. O Estado funciona como um ente a pairar sobre os indivíduos, ele não é, apenas está ali com sua força opressora e invisível, como um incômodo paralisante. É nesse contexto que surge um óvni como um simbólico de que alguma força, nem que seja interplanetária, venha a salvar o ambiente mundano, destruído e corrompido por ambições mesquinhas e espiritualmente vazias.

Todavia, mesmo corrompida ao extremo, Qiao é a tábua de salvação humana na trama de "Amor até às cinzas". Sua conduta se consubstancia como uma busca incessante pelo o que há de mais sagrado na humanidade: o desejo de criar elos insolúveis com outros seres, inclusive sem esperar por cumplicidade e reciprocidade. Jia Zhang-Ke constrói uma história ardilosa, onde uma mulher bandida tenta viver e amar em um mundo decadente, sem empatia e luz. Essa estratégia narrativa pode parecer arriscada, mas nos impulsiona a pensar a humanidade para além da simplória visão de mundo dividida entre o bem e o mal. O filme ainda nos ajuda ver o quanto podemos compreender e apreender de um país por meio apenas de dois personagens aparentemente triviais, mas imersos em um universo adverso e pouco afeito à humanização.

Visto no Estação Net Rio 1, no dia 27/04/2019.

Cotação 4/5

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...