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SE A RUA BEALE FALASSE - Direção de Barry Jenkis

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A força do estético e do político em Barry Jenkis

Por Marco Fialho

Mother, mother, mother
There's too many of you crying
Brother, brother, brother
There's far too many of you dying
To bring some lovin' here today.
You know we've got to find a way
                                               What's on going - Marvin Gaye 


Depois de impressionar o mundo com "Moonlight", Barry Jenkis nos oferta sua nova pérola, o rebuscado "Se a rua Beale falasse", inspirado no livro de James Baldwin, um dos grandes pensadores dos direitos civis nos Estados Unidos. Não adianta mais querer tratar Barry Jenkis apenas como mais um diretor promissor. Nesse seu novo trabalho ele reafirma a visão empoderada do seu cinema, inclusive como uma realidade comercial latente. Devido ao grande potencial que o filme nos apresenta, somado ao fato do diretor já ter ganhado um Oscar de melhor filme, como explicar seu quase apagamento nos principais prêmios da cerimônia neste ano de 2019? Será que Spike Lee, com seu ótimo "O infiltrado na Klan" e "Pantera Negra" representam uma cota racial para Hollywood? Acredito que havia mais espaço para esse filme, igualmente significativo para o ano. A sua não indicação aos grandes prêmios impactou igualmente em seu resultado de bilheteria, pois o filme perde espaço comercial para os títulos indicados aos maiores prêmios da indústria. Menciono isso aqui, já que injustiça também está presente na própria temática de "Se a rua Beale falasse". Mas essa exclusão fala ainda de uma luta que precisa ser travada cotidianamente, reafirmando a ideia de que uma vitória em uma batalha não significa tudo, e que é preciso continuamente avançar, marcar e demarcar territórios, sob o risco de retroceder sempre.             

Entretanto, ao falar de cinema negro norte-americano é impossível não se pensar o que representa o trabalho incansável de Spike Lee, desde o impactante "Faça a coisa certa" (1989). E essa importância não pode ser traduzida apenas por um suposto pioneirismo, mas principalmente pela inserção do cinema negro e militante no mercado de produção, distribuição e exibição formatado e ditado pelos brancos. Se analisarmos a história recente dos EUA e o quanto a supremacia branca se impôs nas relações sociais, colocando os negros em posição de subalternidade, nesse contexto desfavorável, as conquistas são ainda mais expressivas. Os anos 1990 foram fundamentais sim, a começar com o próprio Spike Lee, com obras fundamentais como "Mais e melhores blues" (1990), "Febre da selva" (1991), "Malcolm X" (1992), "Uma família de pernas pro ar" (1994), "Irmãos de sangue" (1995), para citar alguns, mas que felizmente não parou nele, pois não podemos esquecer tantos outros que também reafirmaram o cinema negro por dentro da indústria majoritariamente branca, como Mario Van Peebles, com "New Jack City" (1991) e "Posse" (1993) e John Singleton, com "Os donos da rua" (1991) e "Sem medo no coração" (1993). Aqui não se trata de realizar um inventário, mas temos o propósito de situar esse cinema poderoso que adentrou na rica indústria norte-americana e possui sua inegável força, inclusive comercialmente e vem construindo ao longo desses anos uma narrativa que considere uma estética diferenciada, engajada ideologicamente, em francos embates, mas ao mesmo tempo inserida na própria história dos códigos cinematográficos. Uma luta acertadamente assertiva e constante de representatividade sendo feita por dentro do sistema, com resultados significativos em vários aspectos (estéticos, cinematográficos, narrativos, históricos, sociais). 
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Realizar esse pequeno histórico, nos serve para situar que não estamos apenas falando desse "Se a rua Beale falasse", mas marcando que essa história vem de outros carnavais, e ela possui uma genética mais ampliada, de uma luta que é política, estética, e, especialmente, social, na qual está inserida a luta dos negros pelos seus direitos civis. E toda essa história impacta aqui no Brasil, que também está em luta por um cinema que inclua camadas sociais majoritárias numericamente, mas que foram alijadas historicamente de determinados postos de trabalhos. E nesse ponto falamos especificamente do cinema. Se o cinema nos narra histórias, também nos traz perspectivas e muitas delas inseridas numa luta que está posta na sociedade. E o cinema não pode mais fingir estar alheio a tudo isso. Faz parte do próprio exercício estético pensar como uma determinada história é contada e narrada, o que dizem os pontos de vista dos planos escolhidos pelos diretores e como eles se relacionam entre si. Assim como importa os diálogos e os que eles dizem e nos comunicam sobre o universo de quem os conta. E mais, o cinema também precisa ser dito pelas vozes desses excluídos históricos. Muitas vezes através de poderosos documentários de denúncia ou em ficções que inserem os negros como personagens com subjetividade, não mais como meras peças objetivas de uma engrenagem podre ou como coadjuvantes de um poder branco e supremacista.                 

Então, depois de dito tudo isso, voltamos para o que Barry Jenkis nos oferece em "Se a rua Beale falasse". Para nós, o que se apresenta no filme é resultado de um cuidadoso trabalho de carpintaria cinematográfica. Uma obra para ser lida em sua complexidade cultural, como uma construção imagética e sonora que possui uma cadência toda própria, urdida em detalhes precisos. Som e imagem potentes, caprichosamente entalhados em um manejar escultural em busca de uma perfeição. É com isso que Jenkis nos brinda, com uma câmera milimetricamente pensada, conduzida de forma a extrair de cada situação e personagem a sua mais significativa expressão. Mas cada cena possui um calor que vem tanto da fotografia quente, ocre, vermelha e ocasionalmente azul quanto da performance exemplar dos atores, dirigidos pela mão orquestral e poética do diretor.    
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"Se a rua Beale falasse" cumpre um importante papel de representatividade e de resgaste das subjetividades das populações negras que foram escravizadas e oprimidas por um poder essencialmente branco. Mas se o filme pode expressar um canto contra o racismo, o faz porque antes dele houve um Spike Lee e tanto outros que impuseram afirmativamente seus gritos ao sistema que reafirmava o supremacismo branco. Não que Spike Lee não tenha entoado também seus cantos, mas o que quero afirmar é a importância do que veio antes, o período da construção onde cada tijolo posto foi crucial. Não existiria um cinema com resgate das subjetividades sem os filmes de luta a lhes abrir os caminhos. Todavia, o que Barry Jenkis nos entrega com "Moonlight", e agora com esse belíssimo canto baseado em James Baldwin, é de como o racismo roubou e continua roubando o direito à subjetividade dos negros, e como no cotidiano existe uma barreira real e cruel contra os afro-americanos. Enfim, se "Infiltrados na Klan" é o grito, "Se a rua Beale falasse" é o canto, e um está geneticamente ligado ao outro.       

Enquanto obra, "Se a rua Beale falasse" pode numa primeira e precipitada análise ser interpretada apenas como uma história de amor, todavia vale lembrar que ela funciona apenas como um mote, como um elemento impulsionador para nos revelar as diversas práticas racistas que historicamente foram naturalizadas por um poder branco supremacista. Esse é um grande achado do diretor, partir de uma história corriqueira para falar de algo muito mais profundo. A ideia central é de que os sonhos cotidianos dos negros são assaltados por um sistema coercitivo que lhes são socialmente imposto e os impede de ter uma vida plena em realizações. E isso não é propriamente uma situação tão somente norte-americana, acontece sistematicamente nos países onde houve negros escravizados. E Jenkis consegue inserir tudo isso em sua narrativa de forma excepcional, com requinte de detalhes, muito favorecido pelas suas escolhas. O ponto de vista da narração é de Tish, a jovem e bela mulher negra grávida de seu companheiro negro (Fonny), preso, acusado injustamente por um estupro. O diretor se utiliza largamente da montagem paralela para criar o contraste entre a vida idealizada pelo jovem casal negro e a dura realidade imposta pela justiça branca, sempre indiferente à vida e a felicidade dos personagens negros. Há uma cena onde Fonny comenta que o casal procura um lugar para morar, mas que fica evidente uma indisposição social e discriminatória. Segundo o personagem: "esse país não gosta de preto. Alugam para um leproso para não alugar para um preto". Essa frase sintetiza muito o que Barry Jenkis quer dizer com o seu filme, em especial, da dificuldade de se realizar como indivíduo na América quando se é negro.               

Um dos pontos mais interessantes do filme é a sua montagem, inteiramente construída por situações paralelas que se comunicam significativamente, que dispensam diálogos explicativos e chatos sobre o todo. Assim, pacientemente, Jenkis vai nos municiando de informações, que mesmo intercaladas, conseguem pouco a pouco compor um quebra-cabeça interessante, temático e com junções temporais construtivas. O diretor cria contrastes imagéticos sempre oportunos, como as das visitas de Tish (Kiki Layne) ao seu companheiro na prisão, enquanto vemos os momentos onde o casal desfrutou prazeres juntos, como visitar um loft para alugar, suas descobertas sexuais e o começo de uma vida em comum. Ou ainda, quando intercala cenas onde Tish é agressivamente assediada por um branco, e Fonny (Stephan James), a defende mas é visto como agressor por um policial branco, ao invés de vítima.                                             
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Narrativamente, Jenkis nos dita com precisão um ritmo e um andamento ao contar sua história. Parece que estamos a todo momento sendo embalados por um belo cool jazz entoado por Miles Davis, que providencialmente está presente na trilha musical do filme. Toda a movimentação de câmera está assentada nesse princípio, como estivesse dançando conforme a música. Vale registrar que além de muito bonitas, as músicas estão dispostas no filme com uma equalização estupenda, pensada individualmente para cada cena. Assim, as músicas não aparecem da mesma forma, o sentido delas são variáveis e o diretor sabe como inserir cada uma delas. Sem contar, que o toca-discos do jovem casal é um personagem à parte. Ele aparece em ângulos insinuantes e closes repetidos. Definitivamente, essa é uma das características desse cinema negro contemporâneo, não descolar o som (em especial a música mesmo) de suas narrativas. Não podemos esquecer a força da música produzida pelos negros para a história da humanidade, sobretudo a partir do século 20, com a explosão da indústria fonográfica. Por isso, recomendo fortemente a playlist do filme no spotify, bem ampla, pois foi feita a partir do livro de James Baldwin, que inspirou o filme de Barry Jenkis. 

O que "Se a rua Baele falasse" representa hoje é um cinema cheio de potência e poesia, com negros protagonistas e contando a história de seu país por sua própria perspectiva e com uma estética à altura dos temas tratados. O desocultamento está no próprio título do livro e do filme: a de uma fala que está supostamente presente, mas cuja voz não é ouvida, já que é silenciada pelos poderosos. Por isso é urgente e preciso contar determinadas histórias, e o cinema, é bem propício para isso, pois permite relacionar o nosso tempo com o resgate do passado, para contá-lo sob uma nova luz, a dos que foram silenciados pela história. Não casualmente, cenas documentais sempre invadem os filmes de ficção desses diretores negros. Se é ficção ou documentário não importa. O que importa é que algumas histórias precisam ser recontadas e ponto final. Como bem diz a fala potente do injustiçado personagem Fonny: "temos que viver a vida que nos foi dada". Barry Jenkis sabe disso, e por isso, hoje, é um gigante do cinema, assim como o seu mestre Spike Lee também o é.

Visto no Espaço Itaú de Cinema 5, em 16/02/2019.   
Cotação: 5/5                                  

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