
O êxtase interpretativo de Melissa McCarthy
Por Marco Fialho
"Poderia me perdoar?", dirigido por Marielle Heller, é mais um típico caso de injustiça do Oscar, com apenas três indicações (atriz, ator coadjuvante e roteiro adaptado). Merecia bem mais. O filme faz lembrar aqueles grandes clássicos de Hollywood, onde se destacam o roteiro, a fotografia, a carpintaria da direção e atuações impecáveis dos atores. Talvez o único senão seja esse encaixe muito azeitado e redondo, sem um parafuso sequer frouxo. Enfim, falta algo de imperfeição, um quê de imprecisão humana no fazer artístico. O fato de ser uma história verídica aliada a uma produção esmerada, pode ter colaborado para essa sensação de que tudo está muito certinho demais.
Apesar de tudo está certinho demais no desenvolvimento narrativo e na técnica, o que mais compensa de ver são as devidas ranhuras inerentes aos personagens, o que torna "Poderia me perdoar" um drama envolvente. Um filme realizado por uma diretora sobre uma escritora. O mais incrível é que a diretora Heller consegue humanizar criaturas que estão no fundo do poço e que a primeira vista beiram o desprezível. A atuação de Melissa McCarthy como a escritora falida Lee Israel deve entrar para as mais expressivas do cinema, daquelas para ser lembrada por muitas e muitas gerações, assim como a interpretação marcante e cômica de Richard E. Grant, como o também falido Jack Hock. A afinação dos dois em cena nos remete a tantas outras duplas marcantes do cinema, como Jack Lemon e Walter Matthau.

A parte visual do filme destaca-se por uma fotografia que acentua os tons neutros e a cenografia lúgubre da ambiência. Cada plano é filmado com o máximo de rigor. Vários planos são próximos ou closes, todos com uma precisão técnica espantosa que salientam o talento interpretativo dos atores em cena. Os figurinos de Lee Israel acompanham essa vibração imagética, entretanto os de Jack Hock pincelam umas cores mais abertas, apesar de nunca chegarem a nada que beire à aberração. A casa bagunçada de Lee diz muito sobre a sua personalidade desleixada, sempre muito suja e com os mesmos tons sem graça de seu figurino.
Já a banda sonora de "Poderia me perdoar?" é de um refinamento e tanto, com a primazia do jazz, que muito lembra as trilhas usadas por Woody Allen em suas obras. Aliás, o filme se passa em Nova York, o que faz essa referência ficar ainda mais evidente. As canções em sua maioria salientam o lado mais solitário, tristonho e derrotista dos personagens. Mas somos também surpreendidos com um Lou Reed e um Pixies para tirar a primazia do invólucro jazzístico que predomina no todo. Woody Allen também é evocado no roteiro, em diversas passagens nota-se uma influência em algumas construções de diálogos e de narrativa, como a cena de leitura em off de cartas.

Mencionamos até aqui muito da estrutura visual e sonora de "Poderia me perdoar?", mas claro que não se pode esquecer da imensa contribuição de Melissa McCarthy. Sua atuação fica quase sempre na contenção, ela controla tanto a personagem que nunca passa do tom, dá exatamente o que a cena pede, por isso realiza um trabalho raro, onde transparece seu grande conhecimento de causa. Ela consegue nos fazer amar e odiar Lee às vezes na mesma cena, em especial por perpetrar camadas que muito se somam à sua construção, seja por ela saber todos os diálogos do filme "A malvada" ou no seu alcoolismo incontrolável. Inicialmente a odiamos, afinal ela é pura grosseria no trato com seus colegas de trabalho. No decorrer do enredo amamos sua força e superação para sobreviver em meio a um mundo que lhe vira às costas. Condena o mundo machista dos que ascendem ao panteão das vendas, não necessariamente pelo talento. Ela não se vende, acha fundamental escrever sobre uma comediante dos anos 1950, Fanny Brice, e persiste na ideia quase até o fim. Mas fica uma pergunta: o que é ser uma escritora em um mundo onde as aparências e o jogo do marketing dão as cartas? Se o mercado se fecha com o sucesso de quem reproduz eternamente velhas fórmulas mercadológicas, o que pode ser feito então, já que as contas continuam a brotar como fungos? Como bem diz o personagem Jack Hock, "mudar para o subúrbio ou morrer eu entendo como sendo a mesma coisa".
"Poderia me perdoar?" poderia ser sobre indulgência, mas não é. Talvez seja mais sobre sobrevivência, entretanto, sobrevivência em um sentido maior, o de uma personagem na busca de encontrar um lugar no mundo e não apenas simplesmente habitá-lo. Fala como a força e a beleza de um talento precisa se expressar, mesmo que seja por meios duvidosos socialmente. Essa é a imensa dose de humanidade que o filme resgata. Sutilmente, o filme reafirma a máxima levantada brilhantemente por Caetano Veloso em uma de suas mais belas canções:"gente é para brilhar, não para morrer de fome".
Visto no Espaço Itaú de Cinema 6, em 20/02/2019.
Cotação: 4 e meio/5
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