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HOMEM-ARANHA NO ARANHAVERSO - Direção de Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman


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Entre as dimensões do "real" e do simulacro: o homem-aranha da diversidade

Por Marco Fialho

Só como introdução e antes de entrar na análise propriamente dita, gostaria de fazer um breve comentário. Quem acompanha o meu blog com constância, sabe como não costumo analisar os filmes chamados de blockbuster. Mas me senti disposto a não só fazê-lo aqui, como desafiado mesmo em refletir sobre essa intrigante animação chamada "Homem-aranha no aranhaverso". Desde que ouvi esse título confesso que gostei de um certo estranhamento que ele traz consigo, essa repetição do nome aranha, pouco usual e ainda tudo o que o cercava, um personagem negro, ser uma animação, e claro, o estranho título. 

Ao trazer o "Homem-aranha no aranhaverso", dirigido pelo trio Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman, a Sony Pictures, associada à Marvel, nos oferece uma história potente bem roteirizada e com um acabamento imagético impressionante, embalados por uma animação cuja beleza plástica é de um cuidado espantoso. Além de tudo há ousadia na forma ao incorporar os elementos estéticos do HQ na própria trama, inserindo ainda sua texturas e seus típicos caracteres na narrativa. Há um frescor em relação aos já batidos esquemas narrativos da Marvel que já clamam por novidades há algum tempo.             
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A grande sacada está na construção dos personagens. Logo após Peter Parker morrer ouvimos a seguinte frase que soa como uma sentença: "todos somos homem-aranha". Esse é o caminho adotado pelos três diretores, o nascimento de um novo Homem-aranha. O mais surpreendente é como o fazem, elegendo um jovem negro com sobrenome latino do Brooklin, Miles Morales. Não se tem como negar um ato simbólico fortíssimo nessa decisão. Se em "Pantera negra" a maior indústria do entretenimento assume um herói como protagonista, agora em "Homem-aranha no aranhaverso" atualiza o super-herói branco e loiro em um negro da periferia nova iorquina. Se algo não aconteceu aí não sei bem o que mais dizer. Seria a morte também de algumas formas de representação? A do herói branco, por exemplo? Ou a da própria ideia de herói? (essa mas um indício para o futuro do que uma verdade). São perguntas que ficam ressoando e ressoando, como se fossem um sino a badalar insistentemente em nossas cabeças. Ainda tem a representação do criador, a de Stan Lee como dono de uma loja que vende máscaras do homem-aranha, o que também metaforiza e ironiza o aspecto comercial dos filmes, pois na era da reprodutibilidade técnica se vende produtos ligados à arte. Portanto não é mais só a venda da arte em si, mas sim de seus subprodutos.     

Mas "Homem-aranha no aranhaverso" consegue nos enfeitiçar por outros aspectos também, como o da representação irônica do próprio universo dos HQs e das linguagens envolvidas na tecitura do filme. Na trama o vilão tenta abrir as dimensões que separam o mundo chamado real do mundo da representação, que seria o correlato ao da imaginação, onde os personagens até então presos em um mundo do imaginário dos HQs dominariam o dito mundo real, ou o mundo "real" se tornaria um mundo HQ, isto é um mundo apenas ceifado pela representação. Após a abertura de um portal vários personagens desse mundo invadem o mundo "real", apesar desse ser ainda um momento transitório, pois há falhas na completude de suas imagens, que como aquele efeito desagradável aos nossos olhos, que muito lembra os defeitos dados quando a antena de TV deixa escapar o sinal de satélite.
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As várias representações do homem-aranha invadem a historia. A mulher-aranha (versão feminina), a Peni Parker (versão anime), o homem-aranha noir, o presunto-Parker (versão looney toones) e um Peter Parker decadente e fora do peso, mas ainda com alguns poderes. Esse são os subprodutos de homem-aranha que aparecem no enredo, mas também expressões de uma diversidade própria de nosso tempo e que historicamente não cabe sistematicamente ao universo HQ. Todos de alguma forma estão presos em suas revistas. Isso justifica a utilização da própria textura das famosas HQs onde habitam esses seres "imaginários". Os diretores se aproveitam bem disso para criar divagações temporais funcionais e elucidativas desses personagens. Fora as repetitivas e saborosas apresentações de personagens que o filme propõe. Não contei, mas são muitas e esse recurso é muito bem utilizado até o final do filme. Vale registrar que as reiteradas apresentações de personagens não é um recurso muito utilizado e nem bem visto na maior indústria do cinema, o que caracteriza um elemento de ousadia do trio de diretores. Outra incorporação bem-vinda dos HQs são lembradas na própria organização sequencial das imagens, que aparecem muitas vezes em telas divididas nos fornecendo informações diferentes ao mesmo tempo. Mas evidente que essas ousadias nos recursos estão inseridas em um invólucro onde se inclui outros já aceitos, e até mesmo exigidos, pelo público afeito a esses produtos, como edição acelerada, ambiência multicor, narrativa repleta de ação e explosões e personagens bem caracterizados.               

Queria agora voltar para a análise do jogo imagético, mas exatamente como está posto em "Homem-aranha no aranhaverso" e mais precisamente como ele funciona muito bem ao comunicar uma operação psíquica inerente ao processo de leitura desse imaginário dos HQs. Mas isso também nos traz questionamentos interessantes. Afinal em que mundo vivemos hoje? Como ele se configura e alicerça? Não seria esse mundo o da confusão entre simulacro e realidade? O filme brinca com esses sinais em um mundo que se perde no meio da profusão de identidades que nos são oferecidas cotidianamente. Por isso, bati na tecla logo no começo dessa análise na frase-sentença: "todos somos homem-aranha". Ela é paradigmática, um elemento fundamental para se entender como os simulacros se proliferaram socialmente, a ponto de misturarmos realidade e imaginação. O nosso mundo, mais do que qualquer outro imiscuiu-se com o universo da imaginação, pois esse tornou-se antes de mais nada em um produto comercializável como qualquer outro.
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Afinal, quem é esse homem mascarado? Seria um justiceiro ou um bandido? Apenas um homem que faz justiça com as próprias mãos? Quando é anunciado que todos somos ele voltamos ao fenômeno da identificação pois ele agora é um menino periférico a assumir tamanha responsabilidade de justiça. Seu pai é um policial, daqueles da antiga que defende a fidelidade à lei, mas seu irmão, tio do menino é o vilão. Essa nada mais é que a própria representação da periferia, onde policiais (muitas das vezes esbarram na definição de capitães do mato, matam os próprios negros que descendentemente foram como ele escravizados) e bandidos possuem a mesma origem na hierarquia social opressora.

O filme retrata um Brooklin imaginário, mas bem poderia retratar outras cidades do mundo. Fiquei a pensar na minha cidade, onde as milícias proliferam e dominam o território e a política oficial. Não podemos esquecer que essa é a faceta mais cruel de toda essa justiça paralela, que muitos pensam que é feita à mercê do Estado, mas pouco refletem que é a forma do próprio Estado se estabelecer como poder. O mundo paralelo, tal como o do simulacro nos representa, pois o que esse mundo ficcional está nos mostrando é justamente a forma na qual nosso mundo está hoje sendo vendido para a população, como um caos que precisa ser organizado por uma força superior. "Homem-aranha no aranhaverso" se alimenta e brinca com esse confuso universo entre o simulacro e a realidade. Se há perigos em reafirmar determinados valores de justiça como normativos, há o risco também da mensagem unificadora ("todos somos homem-aranha") possuir uma leitura crítica e aí tudo pode ficar bem mais complicado para quem se beneficia das estruturas de poder.

Visto no Kinoplex Boulevard Rio 5, em 23/02/2019.
Cotação: 4/5
                                                                                                      

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