Pular para o conteúdo principal

FEVEREIROS - Direção de Marcio Debellian

Resultado de imagem para Fevereiros filme

Um bálsamo para tempos difíceis

Um dos maiores problemas detectados nas cinebiografias é a paixão do realizador pelo seu ídolo e seu desejo e angústia em querer abarcar tudo sobre seu objeto. Esse embaçamento inicial traz com frequência consequências desastrosas para o resultado final dos filmes, pois quem quer falar de tudo termina por não aprofundar os diversos temas e tempos abordados.

Desse mal "Fevereiros", dirigido por Márcio Debellian (O vento lá fora, 2014 - também estrelado por Bethânia), não sofre, mesmo sendo evidente a paixão de Debellian à sua personagem. O diretor consegue magnificamente restringir sua temática e a desenvolve com a devida atenção. Seu interesse é trabalhar a beleza inerente à religiosidade sincrética brasileira, tendo a rainha Maria Bethânia como fio condutor. Debellian propõe traçar um arco cultural entre a Bahia e o Rio de Janeiro, aproveitando dois ensejos específicos: a festa da purificação em Santo Amaro e  o desfile da Mangueira em homenagem à Maria Bethânia, ambos ocorridos no mês de fevereiro. O filme também persegue carinhosamente os caminhos que permitiram que Bethânia se transformasse em uma espécie de síntese da nossa cultura religiosa popular. A pequena cidade de Santo Amaro da Purificação é vista como o espaço propício para que possamos acompanhar um poético passeio pela etnografia do recôncavo baiano.

Imagem relacionada

Debellian trabalha então se dividindo nesses dois ambientes, o do Rio e da Bahia, sendo que o filme cresce sempre que Maria Bethânia está em sua cidade natal e decresce um pouco quando se desloca para a Cidade Maravilhosa. Quando o mano Caetano aparece em cena sempre nos brinda com sua inteligência e pelo poder da sua oralidade e fabulação sedutora. Logo em sua primeira aparição, ele nos agracia com um belo poema de sua lavra, que descreve Bethânia como possuidora de uma "voz de cobre e água marinha". A presença magnética da irmã Mabel Velloso também é poderosa e exala energias muito vitais e profundas. Um resgate dos mais oportunos é o de Edith do Prato, uma mulher negra que domina o cancioneiro popular e os cantos tradicionais africanos. E numa dessas aparições, Bethânia recita parte de uma canção que valoriza o mês de fevereiro: "trabalhei o ano inteiro, na estiva em São Paulo, só pra passar o fevereiro em Santo Amaro". Essa é uma canção síntese do filme, que justifica a importância desse mês para a protagonista do filme. São esses personagens maravilhosos que vão impulsionando a narrativa, que vão nos embalando e afagando durante pouco mais de uma hora de projeção.

Durante todo o filme destaca-se a primazia da religiosidade na vida de Bethânia. Existe um respeito e um culto aos mortos, e no caso, todo um lado cerimonioso ligado à memória da matriarca Dona Canô. As deliciosas histórias vão sendo perfiladas uma a uma. Por mais que o formato do documentário não seja inovador, com entrevistas gravadas sem muita originalidade, cada depoimento dado vem envolto de tanto carinho, admiração e respeito por Bethânia e a cultura tradicional religiosa que ela carrega que isso pouco importa, pois cada cena possui um frescor renovado por falas sempre encantadoras. Algumas histórias são especiais e surpreendentes, como a de Caetano explicando sobre ele e a irmã serem uma só pessoa, causo delicioso que coloca o escritor argentino Júlio Cortázar e a Mãe Menininha do Gantuá na berlinda. As histórias onde aparecem o ateísmo de Caetano e Jorge Amado embrenhados no misticismo da Mãe Menininha também engrossam os pontos altos de "Fevereiros".

Resultado de imagem para Fevereiros filme

O único deslize do filme se dá quando Debellian se deixa levar pelos preparativos do desfile da Mangueira, pois eles em si não são tão ricos quanto os do recôncavo, e são nesses momentos que o filme perde um pouco de seu ritmo empolgante. Mas o resgate da comunidade da Mangueira em imagens recuperadas de arquivo, com seus personagens carismáticos, como Cartola e Nelson Cavaquinho constituem resgates preciosos, pois eles aparecem inseridos no cotidiano da favela e mostram o quanto foram imprescindíveis para a carreira de Bethânia e seu reencontro com a negritude no Rio de Janeiro. Debellian consegue amarrar com a devida sutileza os pontos certos desse cruzamento genético entre o Rio e  Bahia.       

No todo, "Fevereiros" se torna um belo vestígio de culturas populares de um determinado Brasil, mestiço, sincrético e enamorado do sagrado ou de sua busca por ele. Quando Debellian decide mostrar e registrar que talvez Santo Amaro seja a única cidade a comemorar o fim da escravidão, o 13 de maio de 1888, tudo pode parecer até algo episódico, mas não é. Ali se encontra um poderoso exercício de memória. Pensar nele significa ecoar também o dois de fevereiro e a luta de que os negros não voltarão a ser escravizados no Brasil.

Resultado de imagem para Fevereiros filme

Mas é claro que o universo musical de "Fevereiros" destaca positivamente a beleza das canções. Como era de se esperar, a música traz uma leveza e induz o público a ter uma empatia em relação ao filme. Músicas que oscilam entre clássicos baianos e mangueirenses, como "É D'Oxum", "13 de maio", "Exaltação à Mangueira", "Alvorada" e "Yaô". E esse reencontro na música representa ainda um poderoso amálgama entre dois territórios originários, onde a ancestralidade negra pulsa vigorosamente. Porém, para além da territorialidade existe um encontro de temporalidades, pois passado e presente estão ali irrefreavelmente entrelaçados, afinal o que "Fevereiros" está a desenhar é o encontro entre tradições populares potentes. Ventilar essas manifestações culturais como nossas, nesse Brasil de hoje, já se constitui em um ato político de primeira grandeza, em especial porque reelaboram nossa vocação pela diversidade. O filme então emana uma luz radiante, que reafirma valores que estão sendo acachapados por uma visão unicista e retrógrada de cultura, representada atualmente por um governo ignóbil, preconceituoso e desastroso.
                           
Preciso confessar que assistir a esse filme no dia dois de fevereiro também me trouxe uma sensação de conforto para a minha alma, além de ressoar um quê de esperança na humanidade e no Brasil. Em tempos de dureza e resistência cultural, filmes como "Fevereiros" são indicados como um bálsamo necessário e revigorante. O filme também me fez lembrar do atualíssimo samba exaltação "Bahia com H", do paulista Denis Brean, lançado em 1947, que nos conclama a aderir aos mistérios dessa Bahia idílica cantada insistentemente em verso e prosa por nossos artistas: "eu sou amante da gostosa Bahia, porém, pra saber seu segredo serei baiano também". "Fevereiros" assim me ecoa, como um convite à baianidade e a uma certa brasilidade, leve e refrescante como as águas e ervas de Iemanjá que purificam as igrejas de Santo Amaro.
 
Visto no Espaço Itaú de Cinema, no dia 02/02/2019.
Cotação: 3 e meio/5

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...