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ESTAÇÃO DO DIABO - Direção Lav Diaz


   

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A implacável ladainha de Diaz

Por Marco Fialho

Apesar de seus filmes serem sempre longos, o filipino Lav Diaz vem conseguindo exibi-los no Brasil, mesmo que com sessões reduzidas e pouco público disposto a assistir odisseias cinematográficas longuíssimas, com obras que chegam a ter mais de 600 minutos. Por isso "Estação do diabo", com seus 234 minutos pode ser considerada uma obra curta para o padrão do diretor.

Um dos motores da filmografia de Lav Diaz está na sua estreita relação com a política das Filipinas, sempre presente, algumas vezes na linha de frente, outras em segundo plano em seus filmes. Em "Estação do diabo" a política aparece de maneira bem explícita no enredo, inclusive nos créditos iniciais, onde ele expõe o contexto no qual a história do filme transcorrerá, o governo ditatorial de Ferdinando Marcos e o período da Lei Marcial, implantado em 1972, sob o pretexto de combater uma suposta guerrilha comunista. Mas a história se passa mesmo em 1979. Em "Estação do diabo", o governo é representado no enredo por paramilitares assassinos, que eliminam e perseguem os opositores do regime. Há uma nítida oposição entre opressores e oprimidos e Diaz se coloca rasgadamente ao lado dos últimos.   

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O mais surpreendente desse filme de Diaz é como ele decide desenvolver o roteiro, por meio de canções. Sim, são quase quatro horas de um musical, ou de um anti-musical, se pensarmos o que se considera um musical no cinema e no teatro, normalmente algo espetaculoso. O tom lúgubre e taciturno predominam e as músicas são entoadas como um lamento, sem instrumentos, à capela, como se fossem diálogos, só que nem sempre com uma mensagem direta, mas com toques mais poéticos. Porquê não dizer que esses cânticos se aproximam muito mais do que nós no Brasil chamamos de ladainha, isto é, um entoar melódico, ritmado, com um viés de um lamento religioso?

Óbvio que com essas características "Estação do diabo" se torna desafiador para o público, talvez seja a mais difícil das últimas obras de Diaz, pois além de trazer essa forma não usual, de incorporar uma forma poético-musical como proposta narrativa, o filme também cria outra complicação, o da repetição. Algumas músicas retornam no decorrer da projeção e esse caráter cíclico desse retorno musical, que a princípio pode soar como enfadonho, muito pelo contrário se torna elucidativo, já que ponto a ponto vai reiterando o discurso de Diaz sobre como a Lei Marcial de Ferdinando Marcos foi nociva, violenta, desumana e absurda. Entretanto deve-se pontuar que a repetição tanto acentua os discursos dos oprimidos quanto os dos opressores, que quase sempre cantam uma mesma música, que aos poucos vai se esvaziando de sentido, se tornando um mero la la la. Intrigante mesmo é um dos personagens do grupo opressor que curiosamente possui um rosto na frente e outro atrás, na nuca. Ele faz sempre um discurso incompreensível, mas nitidamente raivoso, que encontra eco apenas em seus violentos seguidores. Há uma dose de simbolismo muito forte e evidente nele, como se fosse o próprio ditador Marcos mostrando suas facetas contraditórias, uma apaziguadora e outra extremamente violenta, especialmente guardada para os opositores.                 

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Muito do filme se revela pelas letras das canções, ou, se preferir, pelos discursos musicais (todos compostos pelo próprio Lav Diaz), mas não só. "Estação do diabo" se desnuda ainda por outras camadas, como por exemplo a da imagem, ditada especialmente pela soberba fotografia de Larry Manda, não pela sua beleza, mas muito mais pela estranheza que consegue extrair em vários momentos do filme. Em várias tomadas, nos chega uma luz central que estoura, que dificulta a visão, como se fora uma típica iluminação de uma sessão de tortura, quando a claridade se anuncia no rosto do torturado. Nada mais expressivo nesse filme do que essa sensação que Diaz cria permanentemente em nós espectadores, nos colocando no mesmo patamar emocional angustiante de seus personagens. Para isso, Diaz se utiliza de uma câmera predominantemente fixa, colocada em um plano quase sempre geral ou médio. Não há closes em "Estação do diabo". Personagem e ambiente precisam estar ali registrados, afinal o grande protagonista dessa obra é o próprio contexto, e é isso que Diaz parece querer reafirmar cena a cena, uma sujeição do homem àquela realidade. E tudo ecoa como ondas que aumentam gradativamente sua potência. Os tempos sombrios de Marcos estão ali postos, prestes a impor mortes, perseguições, repressão política, e claro, apagamentos. Afinal, para um ditador nada é mais abominável do que a existência da memória. 
      
Todavia, há um incômodo irremediável em "Estação do diabo", um quê de aflitivo para nós brasileiros. Constantemente, o ditador Marcos é chamado de mito, de messias e de narciso. Os protagonistas são um poeta (contestador como também são muitos de nossos artistas hoje, a resistência) e uma médica (empenhadíssima em desenvolver uma medicina voltada para os mais necessitados, o que muito nos faz lembrar o recém extinto Programa brasileiro Mais médicos). A cada nova cena as semelhanças com nossa realidade vão gritando, mas gritam mesmo, a ponto de ouvirmos risadas nervosas conjuntas dos espectadores presentes na sessão. Então, perguntas ficam ressoando em nós: será que a Filipinas de Marcos está mais próxima de nós do que imaginamos? Será que Filipinas é aqui?

Visto no Estação Botafogo 3, no dia 07/02/2019.   
Cotação: 4/5               

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