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A FAVORITA - Direção de Yorgos Lanthimos



Um Lanthimos mais contido do que o habitual     

O grego Yorgos Lanthimos ("O Lagosta", "O sacrifício do cervo sagrado", "Dente canino", entre outros) é conhecido por seu estilo cinematográfico único, onde a ousadia visual, diálogos cortantes e a bizarrice comportamental do humano, em especial da família burguesa, são inerentes ao seu processo de construção dramatúrgica e narrativa, sempre buscando atingir o público com o estranhamento. Por isso, existe sempre em seus filmes algo de incomum, como a incorporação substantiva de animais nas suas tramas, o que suscita paixões e rejeições à sua filmografia que comumente se desvia de qualquer noção mínima de sutileza. Talvez um diferencial de "A favorita", e que vale citar aqui no início dessa análise, esteja no fato de ser o primeiro filme de época da carreira de Lanthimos.

Dentro desse quadro estilístico apresentado acima, podemos dizer que "A favorita" é seu filme que mais se aproxima de uma "normalidade", ou pelo menos, o que se apresenta como um filme mais ameno do diretor grego. Será que a aproximação de Lanthimos com o sistema hollywoodiano já começa a deixar marcas em sua criação artística? De certa forma sim, mas ainda não podemos dizer que as esquisitices tão próprias do diretor estejam inteiramente ausentes em "A favorita", inclusive no campo formal. Talvez um dos grandes estranhamentos produzidos pelo filme seja o uso ou escolha das lentes em algumas imagens. Para os planos situacionais do castelo da rainha, no caso os mais amplos e espaçosos curiosamente Lanthimos filma com uma grande angular, ou a popular lente "olho de peixe", conhecida pela sua deformação da imagem. É evidente que esse distorcer não se configura como um mero maneirismo, ele muito diz sobre a visão que Lanthimos quer produzir daqueles ambientes, e mais do que isso, do próprio estatuto cerimonial doentio que esse espaço enseja. Não casualmente o diretor pesa a mão na fotografia, nos figurinos e na direção de arte como um todo, pois esses elementos ajudam a criar ou a sustentar a artificialidade típica da sociedade inglesa do século 18. Outro elemento importante é a trilha musical que oscila entre a orquestrada erudita (tradicional em filmes de época) e uma de ambiente, repetitiva, bem rame-rame, que cria uma tensão e um incômodo no espectador. A montagem acompanha o desafio de organizar o filme em seu estatuto quase delirante, salientando sempre uma coerência frente a trajetória decadente dos personagens, cada um deles em busca da manutenção de seus status quo. Destaque para a última cena, onde a montagem consegue juntar três imagens que propõe uma discussão pós-fílmica instigante, sem dar um fechamento à trama, o que esvaziaria muito o resultado final.                   

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Existe um aspecto muito bem explorado por Lanthimos em "A favorita" e que pode passar despercebido por muitos. Há um nítido contraste entre a construção da imagem e o desenvolvimento do enredo. O primeiro possui um cuidado extremo de restituição enquanto o outro há um proposital despojamento. Gestos, falas, danças (membros da corte dançando em um baile quase como um street dance) e outros trejeitos comportamentais expressam um quê de contemporâneo que vale lançar uma reflexão a respeito. Será que Lanthimos não almeja nos mostrar que apesar de toda a forma cerimonial que distinguem épocas tão distantes no tempo e no espaço, nós humanos sempre fomos movidos e motivados em nossas ações pelos mesmos sentimentos de inveja, ambição, solidão e que por isso as intrigas, as alianças de interesses momentâneos são aspectos comuns, que mudam de forma, mas sempre estiveram presentes no agir humano? Também não é à toa a profusão de animais em seus filmes, afinal, um dos grandes esforços da cultura burguesa foi a de acentuar sistematicamente a diferença entre cultura e natureza (o que inclui ser humano e animais). Portanto, os animais em seus filmes estão sempre também ali para nos igualar ou nos redimensionar nesse mundo natural. Logo no início vemos nobres praticando dentro do castelo uma corrida de patos. O ridículo da cena se assenta nos nobres, não nos patos. Assim Lanthimos cria um escárnio onde no contraponto entre animais e humanos, o último se revela em sua bizarrice. Assim como os coelhos da Rainha Anne, tratados como filhos (seria uma metáfora ao avesso, já que cuidar dos coelhos seria uma antítese do histórico desprezo dado pelas realezas ao povo).           

Difícil pensar o cinema de Lanthimos sem levar em consideração o tanto de humor que ele imprime em sua narrativa e o quanto ele impregna sua mise-en-scène com um tom manchado pelo deboche. As interpretações muito se ajeitam assim, com toques desconcertantes que distanciam os personagens de uma humanização socialmente construída, daí o caráter bizarro com que os protagonistas se comportam. O trio principal composto por Olivia Colman (Rainha Anne), Raquel Weisz (Lady Sarah) e Emma Stone (Abgail) está muito afinado, o que garante a fluência da trama, muito assentada em suas performances. Os registros de atuação das duas serviçais da rainha são mais tradicionais, bem próximo do habitual em relação aos filmes de época ambientados na corte. Já Olivia Colman, fascinante e arrebatadora, dá corpo a uma Rainha Anne excêntrica, estrambólica, doente, uma rainha sem rei, que dorme prazerosamente com suas damas de companhia. Ao tratar o triângulo amoroso do filme, Lanthimos amarra a uma manipulação do poder que oscila entre jogos de intriga e sexo. Há um diálogo entre a rainha e Lady Sarah onde as duas falam sobre o encantamento da primeira por Abgail, sintetizada na seguinte frase: "gosto quando ela enfia a língua em mim". Poder e carnalidade estão ferozmente embrenhados na visão sensorial de Lanthimos.   

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"A favorita" pode ser encarada de duas maneiras: para uns um recuo estético de Lanthimos em relação aos seus filmes anteriores; de outro ângulo, o filme pode ser visto como um amadurecimento como autor, um enxugamento dos tradicionais excessos que sempre marcaram seu trabalho. Talvez, essa resposta possa estar mais à frente e vai depender de como ele vai conceber suas próximas obras. Agora só temos como referência mesmo "A favorita", então vamos com ela mesma correr os riscos necessários. O maior senão do filme está no seu ritmo, muito avassalador até a primeira metade e mais arrastado na segunda metade. Se isso não chega a impactar sobremaneira o resultado final, o abala e retira sim a sua força estética e narrativa, mesmo que o desempenho de Olivia Colman seja grandiloquente, a queda narrativa pesa no conjunto da obra.

Visto no Kinoplex Tijuca 1, em 30/01/2019. 
Cotação:3 e meio/5
                                                                                                        

                                              


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