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CAFARNAUM - Direção de Nadine Labaki


O apelo sentimental de Nadine Labaki

"Cafarnaum", terceiro longa dirigido pela jovem diretora libanesa Nadine Labaki (do insosso Caramelo, 2007), tem como protagonista Zain, um menino de 12 anos de idade que vive em condições precárias em uma favela. Acompanhamos a saga dele por uma penosa sobrevivência nesse "caos" (utilizado inclusive como título do filme), onde a numerosa família também luta para se manter em meio à pobreza. O filme está indicado ao Oscar 2019, na categoria de melhor filme estrangeiro.

A abordagem proposta por Nadine para a construção cênica e dramatúrgica de "Cafarnaum" transita pelo sensacionalismo e não consegue aprofundar os temas propostos pelo enredo. Há uma primazia dos recursos cênicos que apenas salientam a dramaticidade da trama, que se alavanca mais pela emoção do que por uma ideia de reflexão. Ao assistir ao filme ficamos sim indignados, mas nunca somos levados a pensar sobre, mas somente a sentir as emoções das situações retratadas. O que Nadine Labaki entrega é um simples mecanismo clássico de identificação com o personagem do menino Zain. Claro que o talento e o carisma do menino Zain Al Rafeea é inegável e permite uma fruição atenta do espectador até o fim do filme.     

Entretanto, várias estratégias narrativas e estéticas de Nadine Labaki complicam o resultado final da obra. Muitos filmes trabalham o espaço favela em seus enredos, uns de forma a afirmar as existências periféricas, outros para descrevê-las como um espaço exclusivo da violência e do caos, e "Cafarnaum", opta por essa segunda opção. Não à toa o primeiro plano do filme é uma imagem aérea, onde identificamos, com distanciamento, um lugar feio e caótico, quase que inabitável por seres humanos. Essa imagem funciona mais como um registro inconsciente e só poderia ser pensada e filmada por quem vê aquele espaço como exterioridade, com um olhar de fora, alheio, tomado apenas por aspectos negativos. Mas as distâncias aparentemente se encerram por aí, pois logo a seguir Nadine situará a câmera nos rostos de seus personagens e os acompanharão em sua agitação. O que poderia ser um acerto narrativo, na prática não funciona tanto assim. Essa aproximação termina por comprometer a composição visual da obra, pois o artifício da câmera na mão usado em excesso cansa e dificulta a comunicação pretendida e exacerba a dramaticidade das cenas, o que parece mesmo ser a finalidade incansável de Nadine Labaki. 

Todavia, se há algo que incomoda sobremaneira em "Cafarnaum" é a forma como a trilha musical está inserida na narrativa. Quando as cenas são as mais dramáticas, ela surge desnecessariamente para acentuar ainda mais esses momentos, o que resulta numa concepção excessivamente manipuladora, como uma camada introduzida para gerar uma injeção a mais de emoção, como se o drama de Zain não fosse suficiente em si como expressão dramática nas cenas. Esse artifício além de abalar e tensionar o viés estético, também interfere na ótica política do filme, inteiramente esvaziado pela identificação exagerada ao personagem Zain. Portanto, a crítica aqui não se dá apenas por uma afirmação ou defesa de um formalismo, mas sim por uma vertente política das escolhas da diretora, afeita aos caprichos e efeitos novelescos alinhavados na concepção narrativa dela, que desviam e extraem da trama a subjetividade dos personagens por uma afirmação meramente descritiva das situações filmadas. Ficamos torcendo por Zain cena a cena, para que os infortúnios vividos por ele terminem o mais rápido possível e quando vem a frágil solução final a camada do apelo emocional prevalece de maneira duvidosa. Frisar um sorriso forçado de uma criança chega a ser uma opção desonesta da direção, se torna uma busca obcecada por cativar uma lágrima do espectador. Mas devemos reconhecer que Nadine abre brechas interessantes de serem analisadas, entretanto não as avança, como a do papel da mídia e da justiça em relação à marginalização social de Zain.     

A escolha de narrar a história pelo olhar de Zain é sem dúvida a mais acertada, pois em teoria, ela possibilita e sublinha assistirmos tudo pelo seu ponto de vista. Mas será que vemos mesmo pelo olhar de Zain, ou Nadine Labaki se utiliza dele para expressar somente uma visão própria acerca daquele universo? Por isso algumas falas de Zain soam forçadas e incompatíveis de serem ditas por ele. "Cafarnaum" termina por traduzir uma concepção classista da diretora, ao propor uma discussão social e não identificar suas contradições. Fica parecendo que aquele espaço periférico se organiza por si próprio, que nenhuma estrutura de poder existe para além dele e que ele basta por si mesmo. Nadine não consegue destacar durante os 120 minutos qualquer elemento que soe como positivo daquela comunidade, e isso também revela uma maneira complicada de se analisar um determinado território e as existências ali postas. O todo é sempre mergulhado em conflitos, não há um momento de alívio prazeroso, esse outro (Cafarnaum) ali é sempre violento e impiedoso.   

A única camada de poder mostrada por Nadine é a judiciária, mas de forma acrítica, quase asséptica da sociedade. Todas as outras relações que vemos no filme são realizadas dentro da própria favela. O aparato de justiça está ali para julgar friamente, o encarceramento de uma criança parece ser algo naturalizado. Enfim, o Estado não garante nada para o cidadão, mas se reserva o direito de julgá-lo à luz da fria palavra da lei. Nadine aceita passivamente essa estrutura de poder arcaica e injusta e chega até a desenhá-la como salvadora da pátria para o menino Zain. Para nós espectadores a impressão que fica é a de que os vilões da história são os pais do menino, e não as profundas desigualdades sociais engendradas por interesses econômicos de uma elite privilegiada. Nadine trata a ponta do iceberg como se fosse o todo, o que fragiliza demais o resultado final da obra. Em um único lampejo de lucidez no filme vemos o pai dizer (espasmodicamente) que se ele tivesse tido educação seria mais bem sucedido do que todos eles. Mas infelizmente Nadine não avança nessas contradições. Vemos um irmão mais velho de Zain preso, todavia qual seria o motivo? O aspecto marginalizado é sempre tratado na superficialidade, inclusive o de Zain. Ao optar pelo drama descritivo, tanto o cênico quanto o interpretativo, a diretora prioriza explorar os elementos que valorizam o sentimentalismo, que parecem sempre entoar e enfatizar os tons apelativos na construção da história. "Cafarnaum" se pretende contundente, embora se encerre apenas em uma lágrima furtiva e efêmera.     

Visto no Espaço Itaú de Cinema 3, em 29/01/2019.
Cotação: 1 e meio/5
      



Comentários

  1. Marcos gosto muito de suas críticas e sempre que assisto a um filme gosto de ler sua opinião a respeito.
    Diferente de mim que sou apenas uma amante do cinema vc tem análises cabíveis sobre técnicas que desconheço, o que me enriquece bastante.
    Falo apenas como amante da sétima arte pois nunca fiz cinema.
    Desta vez em Cafarnaum minha análise foi bastante diferente da sua.
    Me senti tocada e envolvida em diversas questões trazidas pela diretora, que são próprias deste mundo conturbado, inflado e desumano que habitamos. O próprio título nos remete a cidade bíblica e não está ali a toa como nome do lugar onde mora o protagonista.
    Ladine a meu ver, não sensacionaliza a miséria e sim aprofunda de maneira sensível às grandes questões das desigualdades.
    Estão lá intrínsecas e as vezes aparente, às consequências do Imperialismo forjando guerras e causando legiões de desasistidos, o consumismo dos países ricos.
    A questão da educação colocada por Hannah Arendt, que teríamos assunto para horas e não cabe aqui.
    Enfim, às questões técnicas por vc colocadas me abriram novos olhares, mas quanto a trilha sonora nem percebi, por isso não me incomodou em nada.
    Na minha simples análise e percepção adoraria que ele tivesse ganho o Oscar de melhor filme estrangeiro, embora tenha torcido por Roma pois ainda ao havia assistido a Cafarnaum.
    Um grande abraço e sucesso, sempre em seu blog.

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