Fragmentos do nosso fracasso e de nossa resistência
Por Marco Fialho
Quem conhece e acompanha o conjunto da obra cinematográfica de Frederico Machado sabe o quanto ela se afina com autoralidade e com o experimento. Agora em “Boi de Lágrimas” esse viés se mostra mais evidente e extremado do que nunca. Nas outras obras do diretor o experimental sempre rondava o narrativo, mas agora não, o narrativo é que se esvai por quase completo, até se insinua aqui e acolá entretanto sem efetivamente se impor.
O que predomina em “Boi de Lágrimas” é a faceta impressionista de sua narrativa, uma colagem de diversas linguagens e de elementos expressos em som e imagem. O filme dialoga diretamente com o aspecto caótico não só da política, mas também de uma discursividade mais ampla, de cunho sócio-cultural e religiosa. Discursos do passado de Sarney se misturam vividamente e contraditoriamente às palavras de ordem vindas das manifestações contra o Governo Temer. No todo, as imagens aparecem sempre de forma ruidosa e fragmentada, criando um conflito na esfera do discurso, mas também no campo da estética.
Mais uma vez Frederico nos fala a partir de seu lugar, o Maranhão, para nos situar em relação ao nosso país, em uma espécie de surto, tal como Glauber Rocha também experimentou em seu “A Idade da Terra”, só que o approach aqui é outro. Enquanto Glauber era fixado em um conceito modernista das artes, Frederico é mais antenado a uma visão de contemporaneidade. Glauber era afeito à alegoria, inclusive nos discursos de seus personagens, já Frederico prefere recursos mais sóbrios. Mas a similaridade entre os dois vem mais de uma proposta de criar um mosaico que instaura ou assume o caos como realidade.
Em contraste com os discursos políticos diretos, onde o tema das reformas canhestras sobre os direitos dos trabalhadores são anunciadas pelo governo golpista de Michel Temer, temos uma outra forma de comunicação no filme, que são as texturas criadas pelo diretor. Os ruídos, os discursos inomináveis, a barulhenta e incômoda falta de sintonia da imagem e do som, as imagens tremidas, repletas de interferências, que balançam e nos turvam a visão. Definitivamente, essa é uma obra feita de intervenções, que se utiliza de fragmentos sonoros e imagéticos para condenar as arbitrariedades atuais de nossa política.
Mas como entender e conviver com esse momento político tão devastador como esse que vivemos? Essa pergunta nos açoita permanentemente durante a experiência do filme. Mas para o nosso alívio, (ou seria nossa tragédia?), no meio de discursos difusos, confusos e demagógicos existe a vida, a vida cotidiana, carnal, onde as tradições sobrevivem como que à margem das desgraças políticas. Os corpos se expressam, seja na dança, no sexo, nas passeatas, no canto do boi e no “Fora Temer”. A vida está aí, ela precisa ser vivida plenamente, apesar dos discursos políticos se sobreporem e ignorar a vida dos mais necessitados, aliás como sempre foi.
Mas sobretudo, “Boi de Lágrimas é sobre um mundo onde enquanto cidadãos fomos derrotados pelos poderosos. O que nos resta mesmo são os fragmentos que as artes nos proporcionam. Não por acaso Frederico Machado nos oferece imagens de Eisenstein amontoadas às das manifestações, são registros da nossa corajosa resistência poética, são pedaços que nos sobram, mas que nos fazem seguir numa esperança humanitária e civilizatória.
Visto no Vímeo no dia 11 de novembro de 2017
Cotação: 3 e meio/5
Cotação: 3 e meio/5
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