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Balanço da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes (2019)


Resultado de imagem para Vermelha filme Getúlio Ribeiro

Balanço da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Por Marco Fialho

obs. somente foram acompanhados e analisados os filmes de longa-metragem.

PRIMEIRO DIA - NOITE DE ABERTURA - 18/01

VAGA CARNE
Logo na cerimônia de abertura da mostra podemos vislumbrar o quanto de instigante ela seria ao longo de seus 8 dias norteada pela temática "Corpos Adiante", pensada pelos curadores, mas inicialmente idealizada por Cléber Eduardo. Tudo começou com uma homenagem à Grace Passô, seguida à exibição do filme "Vaga Carne", inspirado no seu sucesso teatral e dirigido por ela em parceria com o cineasta Ricardo Alves Jr.. O filme foi produzido pela Universo Produções, organizadora do evento. O tempo para realização da obra foi de aproximadamente um mês. O desafio era imenso, pois como transcodificar de uma linguagem para outra uma obra tão complexa em um espaço de tempo tão diminuto? Isso talvez possa justificar algumas imprecisões do filme, possuidor de qualidades, mas que também é atravessado por alguns problemas. Um grande acerto do filme está na materialização do som, composta por uma voz que se reencarna, que se transforma em entidade. A inversão proposta pela peça, onde as palavras buscam sua corporeidade nos objetos funciona muito bem nas primeiras cenas, onde somos conclamados criativamente a imaginar essa subversão lógica. Mas os riscos dessa empreitada são deveras fascinantes, porém volumosos e muito arriscados. Apesar do jogo de renomear e se ressignificar ter sido potentemente lançado, restava ainda um desafio maior, o de reposicionar o corpo e seu pertencimento em um território hostil. Mas o que mais joga contra a versão cinematográfica são exatamente suas soluções imagéticas, que limitam o potencial cênico da obra original, onde determinados enquadramentos restringiram a performatividade corpórea de Grace, sua maior potencialidade. Por isso, o resultado final é satisfatório, apesar de não ser de todo grandioso.  

SEGUNDO DIA - 19/01

MESAS TEMÁTICAS E CURATORIAIS

Um dos grandes acertos da 22ª mostra a ser elencado foi como os curadores conseguiram amarrar o tema "Corpos Adiante" com a escolha da homenageada. E isso ficou muito evidente nos filmes e na própria mesa "A presença de Grace Passô", onde ela pode descrever seu mergulho no teatro e de como se manteve afastada durante muitos anos da televisão e cinema pelos roteiros estereotipados, pela forma como os corpos estão ali descritos.   
   
Na mesa "Corpos Adiante" podemos melhor conhecer como os curadores da 22 Mostra de Cinema de Tiradentes conceberam essa temática. O que importa para eles não seria mais o filme como espaço para exprimir sua revolta contra o presente, mas sim para afirmação de suas subjetividades. Cléber Eduardo, na abertura do catálogo da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes assim a delineia:
"O corpo no cinema é inevitabilidade. E também escolha. Primeiramente, quais corpos ganham imagens, narrativas, diálogos e subjetividades? E de que modo? Personagens são frutos de escolhas."  

TEMPORADA
O destaque da segunda noite foi o filme "Temporada". No debate, André Novais Oliveira endossa a fala da historiadora Natália Batista de que vários textos críticos publicados, desde a sua vitória no Festival de Brasília, enfatizam a qualidade do filme apesar de nada acontecer efetivamente. Para eles, e eu concordo inteiramente, isso é falso, pois muita coisa acontece em cena. 
Novais demonstra uma capacidade impressionante de falar de forma direta sobre seu processo de criação, da fabulação presente nos personagens, do roteiro precisamente cuidado e da sua recriação poética do cotidiano.


A sua estrutura narrativa pode até, enganadoramente, aparentar ser de uma simplicidade extrema, todavia ela constitui a própria estratégia de construção fílmica de Novais, conforme já havia esboçado em Ela Volta na Quinta, seu primeiro longa. O esforço do cinema que Novais vem percorrendo é justamente o de tentar reconstruir o cotidiano, sempre o de pessoas simples e que vivem nas periferias. Há nessa proposta um requinte fora do comum, a cada plano do filme sente-se isso. E o mais importante na proposta narrativa de Novais é que o discurso da imagem prevalece sobre o que é dito em palavras, essa é a sua beleza e a sua essência de sua imensa potência.

ILHA
Depois do sucesso no Festival de Brasília, um dos filmes mais aguardados da 22ª Mostra de Tiradentes, Ilha, dirigido pela dupla Glenda Nicácio e Ary Rosa, fez o fechamento da noite, sendo bastante ovacionado ao final, assim como já ocorrera em Brasília.

Quem esperava algo na linha do delicado e do poético de "Café com Canela", se surpreendeu, pois Ilha envereda-se por outros caminhos, de riscos bem maiores. A utilização de duas câmeras emperra um pouco a proposta do filme. A metalinguagem acompanha a trama até o fim, mas o maior problema mesmo do filme é tentar abordar muitos temas ao mesmo tempo, sem conseguir a contundência esperada. Há alguns discursos que beiram a inocência, como "o nosso cinema é coragem". As atuações, exageradas, também chama a atenção, o roteiro teatralizado ao extremo é outro ponto que não colabora para que a a engrenagem do filme funcione de maneira azeitada. Questões como do corpo, uma das marcas da curadoria desse ano da mostra, permeiam a obra também, assim como as temáticas do racismo, do estupro e da sexualidade. Mas como Ilha é apenas o segundo filme dessa talentosa dupla, formada na promissora UFRB, ficamos na expectativa de suas próximos trabalhos. 

TERCEIRO DIA - 20/01

A obra "Tragam-me a cabeça de Carmem M.", filme de invenção de Felipe Bragança e Catarina Wallenstein, tem como mote a personalidade de Carmem Miranda que se insere como um pretexto para se discutir uma determinada ideia de cultura brasileira ontem e hoje. O filme se organiza como uma colagem temporal, onde a antropofagia, o samba carioca e os esteriótipos culturais se defrontam com corpos tal como se apresentam na contemporaneidade. No filme, uma atriz portuguesa, que se prepara para viver ficcionalmente Carmen, e por isso se aproxima do território cultural carioca, na tentativa de entender esse universo e as vivências da artista nesse ambiente. A ideia de cinema de invenção se fortalece com a presença de Helena Ignez e nas palavras que ela profere: "o Brasil como está hoje só pode ser cantado como uma piada". Essa frase sintetiza bem o que vemos na tela, um país esfacelado, onde o que prevalece é um estranhamento entre os processos culturais e a sua idealização. O filme de Bragança esbarra numa certa dose de pretensão, principalmente na tentativa de construção de ideias totalizantes sobre o país, mas possui bons momentos, em especial quando a presença carismática de Catarina Wallenstein aparece para brilhar na tela. 

INFERNINHO 
"Inferninho", dirigido por Guto Parente e Pedro Diógenes pode tranquilamente figurar como um dos filmes mais originais e insólitos do cinema brasileiro recente. O filme nos encanta pela imensa capacidade de criação de um universo próprio. Godard certa vez disse acerca da incrível potência do trabalho do diretor de cinema, de sua capacidade de ser uma espécie de demiurgo, devido a sua propriedade intrínseca de inventar um mundo à sua imagem e semelhança. "Inferninho" se encaixa inteiramente nessa ideia. Não à toa o filme se impõe esteticamente pelo artificialismo, construído de forma a criar um ambiente contraditório, onde tudo é fantasia, mas os sentimentos não. Faz lembrar "Querelle", de Fassbinder e "O fundo do coração", de Copolla, mas o grande diferencial dele em relação a essas obras está na fantasia e no artificialismo visual de seus personagens. Se temos sinais de invasão do mundo convencional, ele vem de forma também artificial, no uso de bizarros Chroma Key de monumentos para lá de manjados do turismo mundial, como as pirâmides egípcias e a Torre Eiffel. Mas no espaço do inferninho, os personagens estão ali desgarrados, com seus corpos que emanam decadência e solidão, para ouvir uma cantora de música brega desafinada. Inferninho é uma síntese de um mundo calcado em esteriótipos, cujas máscaras entregam o vazio existencial do nosso tempo. Um filme marcante e imperdível.

QUARTO DIA - 21/01
SUPERPINA : GOSTOSO É QUANDO A GENTE FAZ - Mostra Olhos Livres
Narrativamente, o "Superpina", filme pernambucano dirigido por Jean Santos, desenvolve um realismo que beira o exótico e o caótico ao explorar um ambiente típico e representativo do capitalismo: um supermercado. Há um explícito deboche incorporado à narrativa, e ele não vem necessariamente acompanhado com humor. Superpina trabalha propositalmente e contraditoriamente com um espaço realista contrastado por personagens incomuns, contaminados por um misterioso fenômeno luminoso da natureza que irrompe no céu do nordeste brasileiro.
Do ponto de vista dos corpos, o filme soa bastante provocativo em relação a como o cinema trata historicamente as cenas de sexo e de como colaborou para se criar uma imagem pasteurizada do ato sexual. Mesmo que de maneira caótica e anárquica, Superpina questiona um sistema onde todos viram produto e marketing, inclusive o tal do "amor primo" (uma ideia de amor calcado na carnalidade, mas não confundir com o "amor livre" dos hippies), que flerta com o libertário, mas não consegue também fugir do processo de mercantilização. Em seu realismo, ou em seu contrarrealismo, o filme abusa de clipes, orgias e situações que configuram corpos em busca de identidade e personagens inusitados, como seguranças que roubam o supermercado ao invés de protegê-lo dos larápios de ocasião, e funcionários pouco "profissionais" que trocam beijos na boca e agarrões intrépidos durante o horário de expediente.

SEUS OSSOS E SEUS OLHOS
Uma primeira observação a fazer acerca do surpreendente "Seus ossos e seus olhos" é que ele se mostra como um filme que coloca a própria narrativa como protagonista. Mas não só. Além das palavras que costuram essa narrativa, os corpos também estão ali atravessando tudo que é dito. Há um repetição narrativa, mas ela não consubstancia tudo que vemos e ouvimos. Os gestos dos corpos também se repetem em movimentos como se eles buscassem se ajustar no mundo e isso fica evidente logo na segunda cena do filme, onde o corpo inquieto do personagem vivido pelo próprio diretor se enrosca pelo chão, numa tentativa ansiosa de se conformar ao espaço.
O diretor Caetano Gotardo constrói uma obra sofisticada, muito atenta aos detalhes, tanto no texto falado quanto no texto corporal que descortinam como uma espécie de fabulação, embasada numa memória muitas vezes imprecisa. Não à toa a nomeação das coisas e dos fatos assumem um papel fundamental nesse sensível e belo filme. E perguntas como: quais impactos podem as imagens nos causar? Em uma cena em que dois personagens visitam o museu e rememoram o que aquela imagem representa para eles, somos levados a refletir como os corpos estão em constante transformação. O visível e o invisível, o audível e o inaudível se fazem presentes e Caetano parece nos dizer que os corpos conversam, dançam e dialogam permanentemente com o mundo para além das representações que comumente se fazem deles, nos entregando uma integralidade e uma intensidade corporal poucas vezes vista no cinema.

QUINTO DIA - 22/01
TRÁGICAS
A obra "Trágicas", dirigida por Aída Marques tem como proposta expor depoimentos de mães que perderam seus filhos em três momentos: na ditadura militar de 1964, no genocídio socialmente silencioso nas periferias e na xenofobia contra os refugiados. Em paralelo três tragédias gregas são encenadas (Antígona, Electra e Medeia) como contraponto. Trágicas nos vislumbra como um dos maiores equívocos da curadoria em 2019. Por mais que as falas das mães sejam fortes e impactantes, esse confronto entre o encenado teatralmente e os depoimentos não resulta satisfatoriamente, em especial porque o corte de um para outro tira o foco e enfraquece a força presente na dor dessas mães. Mas outros detalhes também comprometem o resultado final, como a aproximação da câmera do rosto das entrevistadas na hora mais dramática das suas falas. Outra questão a ser mencionada como equivocada é a opção da diretora em realizar um documentário por demais convencional e sem criatividade na hora de captar as entrevistas, todas em primeiro plano e em contra-plongée (câmera baixa). Frágeis também podem ser enquadradas as encenações teatrais, todas filmadas sem o menor lampejo criativo e que na maioria das vezes nada acrescentam aos depoimentos das mães, apenas lhe retiram toda a eloquência.

TREMOR IÊ
Tremor iê aposta numa performance audiovisual saturada de referências políticas atuais. Há uma valorização de uma resistência a um poder instituído, uma sociedade estabelecida em suas aparências, onde os chamados "homens de bem" dominam e controlam essa realidade social, em um cenário de forte aparato policial repressivo. A atmosfera distópica domina o fluxo do filme, em um jogo de temporalidade incerta, o que cria algo de vertigem em relação a luta de dominados contra dominadores (os que estão no poder). A sonoridade do filme, com os apontamentos insistentes de um berimbau, grita e de certa forma nos mostra e impõe de qual ponto de vista está se colocando as diretoras. Diante de um quadro de opressão implantada, o resistir se torna uma forma de luta pragmática, mas sem esquecer que há também uma luta simbólica em jogo e que se organizar para sequestrar os restos mortais do ícone nacional chamado oportunamente de Castello Branco, se transforma em um poderoso ato contra o regime imposto à força. Impossível não relacionar esse fato com a própria história do Brasil. Os corpos que ali se apresentam são por si só resistência. O vestir, o agir e o cantar periférico (em especial o rap) estão presentes no melhor estilo do jargão tão atual como o "ninguém larga a mão de ninguém". Mas do que cinema Tremor iê é resistência nesse Brasil de 2019.

SEXTO DIA - 23/01 
CURRAIS
Currais, dirigido por David Aguiar e Sabina Colares, se apresenta como um documentário investigativo acerca dos campos de concentração no Ceará, em 1932, responsável pelo flagelo que atingiu milhares de pessoas após um grande período de seca. Os diretores optaram por escalar o ator Rômulo Braga como um personagem em busca de um parente que poderia ajudá-lo na tarefa de reconstituir a história desconhecida e apagada pelos poderosos locais. No decorrer da trama, essa estratégia lentamente, cena a cena, acaba retirando muito da potência existente no precioso resgate histórico de apagamento imposto pelas nossas elites. O que poderia ser uma retumbante denúncia do extermínio populacional fracassa por não dar o devido protagonismo aos fatos, mas sim, ao invés disso, os diretores priorizam a narrativa ficcional e a presença carismática do excepcional ator Rômulo Braga. Mas ao final tudo cai mais ainda por terra, quando os aspectos performáticos e lúdicos tomam às rédeas da mise-en-scène apenas para reafirmar o que já havia sido dito anteriormente pelo próprio filme. Assim, Currais desperdiça a pesquisa realizada, por enfatizar mais a encenação ficcional do que o desenvolvimento de uma construção documental eficaz e de denúncia. Os diretores fracassam por não conseguirem encontrar uma narrativa apropriada para comunicar seu principal ponto temático: o genocídio da população nordestina excluída economicamente.  


A RAINHA NZINGA CHEGOU
"A Rainha Nzinga chegou", dirigido por Junia Torres e Isabel Casimira Gasparini pode ser apontado como uma das gratas surpresas da 22ª Mostra de Tiradentes. Isabel, uma das diretoras, é também a protagonista do filme, o que muito diz acerca da relação respeitosa que Junia, a outra diretora, estabelece com o tema: as tradições do grupo de congado chamado Guardas de Moçambique e do Congo. O filme se divide em dois momentos: um primeiro onde conhecemos os rituais performáticos do grupo, que se encerra com a morte inesperada de sua rainha, e um segundo, onde a provável futura rainha viaja para Angola para encontrar suas origens. Não há nesse filme uma necessidade de se explicar nada, apenas acompanhamos os rituais e depois os encontros com os ancestrais. A beleza do filme está em sua simplicidade, no seu respeito aos personagens, onde o fluir da narrativa se impõe pelo fluxo das próprias descobertas e aprendizagem deles, e que aos poucos vão se transformando também em nossas, tamanha a afeição pela qual vamos sendo tomados. Há nessa busca, por reafirmar as tradições e suas mitologias fundadoras, uma potência inegável e que sequer precisa ser explicada em palavras. Há uma constante reafirmação das vivências dos personagens que tornam prescindíveis esclarecimentos cartesianos sobre os rituais. Enfim, um filme para se deixar levar, nem que seja para usufruir do convívio com os personagens inebriantes ou pela simples descoberta da magia do viver que só mesmo o cinema pode nos oferecer.

SÉTIMO DIA  - 24/01

PARQUE OESTE
Parque Oeste, dirigido por Fabiana Assis, traz a luta de uma comunidade pelo direito à moradia, acusando diretamente o Governo de Marconi Pirilo pelo massacre impingido aos seus moradores. Nesse filme a câmera se transforma então em arma para denunciar a agressividade e o desprezo dessa administração pelos populares. Se um governo escolhe um lado, o da especulação, a diretora também faz a sua escolha em ressaltar a luta daquele coletivo por dignidade. Logo nas primeiras cenas vemos imagens publicitárias de imóveis dos anos 1970, que mostram o quanto e quando essa ideia de indústria avassaladora se impôs com seus interesses econômicos. O filme tem como protagonista uma mulher ativista, casada com outro ativista que foi assassinado pela polícia do Estado de Goiás. Parque Oeste é desdobramento de um curta-metragem anterior, Real Conquista, nome da comunidade para onde eles foram deslocados depois de expulsos do Parque Oeste. Parque Oeste mostra a luta insistente de Eronilde, mulher que tenta articular o movimento de resistência dos moradores, em especial nesse novo lar, onde os serviços básicos estão ausentes.


DESVIO
"Desvio", filme dirigido por Arthur Lins, explora o personagem Pedro, um presidiário, que trabalha em um supermercado e cumpre pena em regime semiaberto. A história se passa no período de indulto de natal, onde ele aproveita para retornar a cidade de Patos, no interior da Paraíba para revisitar a família e antigas amizades. Apesar de "Desvio" apresentar um enredo muito interessante e pertinente acerca dos caminhos e descaminhos da juventude, sua força se perde em meio a um roteiro que pende para uma visão convencional de cinema e diálogos pouco profundos que não dão espaço para a reflexão do espectador. As interpretações, talvez por uma deficiente direção de atores, não conseguem ampliar os elementos dramáticos dos personagens. As melhores situações são as musicais, com um resgate de uma memória sonora juvenil, onde o punk rock e o hardcore permeiam um imaginário ideológico e comportamental. O interessante conflito geracional é pouco explorado e mal aproveitado em diálogos forçados e óbvios. No todo, Desvio entrega um filme cheio de energia, mas superficial por não conseguir canalizar e potencializar sua força intrínseca.

VERMELHA

"Vermelha", dirigido por Getúlio Ribeiro é daqueles filmes que nos instigam, que nos deixam a pensar incessantemente sobre sua construção. Nos parece que seus fatos imprecisos brincam com nossa noção de temporalidade, linearidade e causalidade. Os dois protagonistas, Gaúcho e Beto, são cativantes e revelam bem como determinados corpos se expressam no mundo por meio de ações corriqueiras e como suas personalidades e vivências se estabelecem no cotidiano. Todavia o filme não abre mão do inusitado, quando um ser morto vai cobrar uma dívida de Gaúcho. Esse não levar a sério determinadas regras clássicas cinematográficas muito dizem sobre suas pretensões estéticas e narrativas, trazendo muitas vezes um humor que mesmo que exibido contidamente, se revela ainda sim marcante e desconcertante na maioria das cenas. A visível liberdade de criação gera praticamente uma série de esquetes, que muitas vezes podem ser digeridos por si mesmos, principalmente pela forma na qual a montagem é realizada. Outra característica interessante do filme é a recriação do cotidiano. Falo especificamente da locação interiorana, onde as relações estão mais esboçadas do que necessariamente inventariadas e codificadas. A forma com que família, amizades e até desafetos se apresentam na narrativa, se desenham por meio da montagem que desconstrói temporalidades, mas preservam uma noção de espaço (onde a casa da família é o mais recorrente). O prosear, os embates físicos, a relação amorosa entre mãe e filha, a estranha relação com a cadela Vermelha, a intromissão das narrativas televisivas (que se tornam formas narrativas dentro do filme) formam um conjunto imagético e sonoro potentes que lançam diversos desafios para nós público, nos obrigando a amarrar por nós mesmos várias pontas soltas que o filme nos oferece. "Vermelha" nos convida a ser visto, revisto e muito debatido, um cinema extremamente vivo, pois não se encerra em seu objeto e consegue impor uma narrativa e um conceito estético que extrapolam os ditames clássicos, quase sempre limitadores e normatizadores que predominam no mercado. Getúlio nos dá uma pista de que a vida pode sim ser como o cinema: descontínua e livre, sem amarras que apontem como devem se organizar a vida e o cinema. 

OITAVO DIA - 25/01

A ROSA AZUL DE NOVALIS
"A rosa azul de Novalis", dirigido por Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro, inicia com um close do cu, em que deixa claro o que estará sendo tematizado no decorrer do filme. Quando a câmera se afasta vemos o personagem numa posição ritualística recitando um lindo poema de Hilda Hilst. Há no filme um algo de cíclico pois imageticamente tudo começa e termina no cu, sendo fechado na primeira cena e aberto na última. Mais político do que isso impossível. Mas entre a primeira e a última cena existe muito mais, claro. Existe o personagem Marcelo Diorio, dono do cu, de corpo inteiro, afinal não faria sentido falar dele o desvinculando do seu todo. Como em seu filme anterior, "Lembro mais dos corvos", Vinagre explora a fabulação do personagem, que fala de visões sobre sua vida, suas ideias e devaneios intelectuais, mas em "A rosa azul de Novalis" há sinais de uma maior teatralização, com esquetes filmados à parte e que ampliam a própria temporalidade do filme, como a da encenação da morte do irmão e o banho do cu de Marcelo Diório no leite de amêndoas, inspirado no livro "A história do olho", de Georges Bataille. Evidente que há um forte caráter político no filme, desde o discurso antinormativo que a obra assume, e mais do que isso a forma pela qual ela se impõe a nós como espectadores. Outra questão relevante que o filme traz é a do corpo-memória, porque por meio dele tudo se transcorre, inclusive imagens que são mostradas no rosto-tela de Diório. A performatividade não se dá apenas pelo protagonista, mas também na proposta da própria encenação, que muito mais do que apenas mostrar, constrói um universo lúdico-libertário da homoafetividade, com imagens belas e marcantes, como a da destruição do carro símbolo da repressão heteronormativa. Assim o filme vai se sobrepondo camadas estéticas, narrativas e de memórias, todas fundamentais para as pretensões audaciosas da obra. Mas o final de "A rosa azul de Novalis" merece menção especial ao conseguir primeiro realizar um discurso forte sobre o cu. Entretanto, a dupla Vinagre e Carneiro não param por aí, conseguem ir além, ao reafirmar duplamente o objeto cu como discurso fílmico e poético. Os diretores fazem algo arrebatador ao conseguirem que uma única imagem condense todo o discurso fílmico.

UM FILME DE VERÃO
"Um filme de verão", filme dirigido por Jo Serfaty, vem no esteio das obras que reafirmam a vida cotidiana de pessoas que inventam suas existências em meio a um território periférico. Dessa vez, tudo se passa na cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente no bairro Rio das Pedras, na Zona Oeste carioca, dominado pela ação paramilitar e violenta da milícia local. Mas o que a câmera acompanha são as ações de 4 personagens, no seu conviver na escola, inclusive nas lutas por uma escola pública de qualidade em que a participação dos jovens almeja estar presente. Mas as férias chegam e o tempo de viver plenamente o lazer, mas sem esquecer que há o tempo de buscar o trabalho. Os corpos lidam então com o espaço público e privado e se reafirmam em cada cena em sua existência. "Um filme de verão" assume uma dimensão política potente ao mostrar o ponto de vista e a subjetividade das populações que vivem nas periferias brasileiras, muitas vezes renegadas pelo poder público, que só lhes reserva discriminação e violência. É importante lembrar e enfatizar o trabalho fantástico da montagem de Cristina Amaral, que costura de forma hábil, acrescentando significados e contrapontos valiosos, que conseguem amalgamar potencialmente e com expressividade cada cena do filme.

Não houve cobertura no último dia. 




CONFIRA OS PREMIADOS DA 22ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES E A JUSTIFICATIVA PARA OS PRÊMIOS CONCEDIDOS PELOS JÚRIS OFICIAIS:
JURI POPULAR
- Melhor longa-metragem Júri Popular: Meu Nome é Daniel (RJ), de Daniel Gonçalves.
- Melhor curta-metragem Júri Popular: Negrum3 (SP), de Diego Paulino.

- Melhor curta-metragem pelo Júri da Crítica, Mostra Foco: Caetana (PB), de Caio Bernardo. 
“Pelo investimento e confiança nas bordas do acontecimento, nos lembrando das potências políticas  da opacidade, e esculpindo uma ação metafórica através de sua materialização em ideias sonoras e pictóricas, fazendo com que a economia gramática do filme exprima sua ideia motriz em cada quadro.”

- Melhor longa-metragem pelo Júri Jovem, da Mostra Olhos Livres, Prêmio Carlos Reichenbach: Parque Oeste (GO), de Fabiana Assis. 
“Pelo cuidado e dignidade de se filmar o sofrimento, sem suavizar o horrível de suas imagens, ou nele se estagnar, por mostrar um futuro a ser construído por corpos que, mesmo atravessados pelo risco constante do presente, seguem adiante, e por ressoar o tremor da vida que resiste, sempre, porque essa é sua única possibilidade.”

- Melhor longa-metragem da Mostra Aurora, pelo Júri da Crítica: Vermelha (GO), de Getúlio Ribeiro. 
“Por manejar, através da imprevisibilidade de sua condução, uma sutil unidade de medida para si e por conceber assim um dinâmico exercício cosmodoméstico sobre a ideia de narração, edificando  uma vigorosa investigação de um Brasil sem mar, conjugando humor e experimentação estrutural.”

- Prêmio Helena Ignez para destaque feminino: Cristina Amaral, montadora de Um Filme de Verão (RJ). “Pelo trabalho de excelência, que  se constrói com precisão de olhar e fluidez entre os planos, como uma voz e presença ímpar na montagem cinematográfica, que atravessa mais de 30 anos no cinema brasileiro como uma potência que se reitera e atualiza numa execução brilhante.”

- Prêmio Canal Brasil de Curtas: Negrum3 (SP), de Diego Paulino.

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